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erotismo,
pornografia
e
cultura

 

o boi - revista dos alunos de filosofia da unicamp
(ano 2 - no. 2 - maio 00 - esporádica)

[versão digital: II d.2k]


o boi _ revista dos alunos de filosofia
da unicamp

ano 2 _ no. 2 _ maio 00 - esporádica

conselho editorial:

janaína damasceno gomes
wilian fernandes pereira
l.m.n.f.

foto da capa:
Língua de Sogra. Mariana Meloni. Modelo: Fernanda Raquel Ano: 1998

projeto gráfico:
wilian fernandes pereira
bruno santos da cunha

O BOI

https://delenda.tripod.com/oboi.htm
oboi@bol.com.br

agradecimentos:

adriana leandro
mario luiz gomes da silva
marilza aparecida da silva
lucília kornijezuk

:: os materiais publicado em `o boi' expressam a opinião de seus autores; a da revista encontra-se no editorial. a reprodução de artigos é permitida desde que devidamente creditada (autor e veículo) ::

EDITORIAL

Foi tentadora a idéia começar a revista com um daqueles discursos como os que encontramos em panfletos de exposições, ou em painéis explicativos dessa nova onda de coisas a que atualmente chama-se `arte', que se resumem a três categorias: instalações, interferências e perfórmances. Algo do tipo: "O movimento intrínseco-dialético-pragmático de Eros no inner-self do indivíduo enquanto ser holístico e os reflexos histórico-sócio-afetivos dessa dobra no desvelamento dos dias pelo pensar e pelo agir" parecia-nos apropriado, mas alguma coisa - além da idéia de provocar, claro - levou-nos a, de certo modo, não fazê-lo completamente.

Se editoriais tendem, no geral, a serem amenos, imparciais, ausentes - bem, perdoe o leitor, mas pecamos! É condenável - com toda incisividade que carrega o juízo de valor - a ausência de colaboradores que enfrentamos, a cada número, a cada tema, a cada necessidade de ilustrar um artigo, uma capa. Se poucos são os textos oferecidos, raros são os prontos para publicação, ou mesmo os já digitados. Por isso, afim de continuarmos nosso projeto de modo menos penoso, menos arriscado e mais eficiente, usamos de duas armas: i) burocraticamente, tanto por facilidade de manuseio quanto por falta de aparato burocrático para atuar

diferentemente, não receberemos manuscritos; ii) desafiamos o leitor d'`o boi' a: ou colaborar com a revista, ou a carregar consigo o peso de nossa triste extinção. Trágico assim.

Provocamos por todos os poros, já desde o primeiro número, mas talvez estejamos pregando pra surdos, ou pra paredes, vai saber... Quem discordar que grite, ou que atue (colaborações periódicas seriam um bom começo). Uma seção "E-mail" mais participativa seria certamente algo bastante desejável.

Então estamos conversados. Agora convém relaxar, tranqüila e ociosamente, e aproveitar esta singular edição (vale até ler a revista, eventualmente!). A entrevista, os textos, fotos, desenhos e tudo o mais formam um conteúdo bastante interessante e informativo. Sobrevivemos aos golpes incessantes dos preguiçosos e dos medrosos.

Ah, e, quanto às queixas e provocações, não se preocupe: não deve ter sido com você...!


W. F. Pereira, 1997.


Ilustr.: João Carlos Luengo, 2000.

e-

mail

Mensagem recebida em
06/10/99:

"ao BOI

Seguem meus parabéns a todos os "pais & mães" deste bovino. A revista de vocês ficou muito bem estruturada e recheada. Gostei muito de ter a oportunidade de lê-la.

Que O BOI escape de todos os abatedouros e frigoríficos que encontrar pela frente. tenham certeza que o trabalho de vocês valeu a pena.


Tássio Franchi

Londrina-PR
P.S.:Que Deus (se ele existir) salve O BOI !!!!"


Ilustr.: João Carlos Luengo, 2000.

História/UNICAMP

DESINOCENTIZAÇÃO

Do pecado original
nasceu o amor e os filhos
No deserto divino
se levantou uma pedra,
descobriu-se então o sangue
e houve a morte.

Será por quem
Eva chorou?

Tássio Franchi
Londrina-PR


aberto o guarda-chuvas
andávamos
chovia em minha face
e estava seco por dentro
nela um sol se abria
lado a lado
nunca tão distante
como antes

Azarias de Oliveira Júnior

- Letras/UNICAMP

Ilustr.: João Carlos Luengo, 2000.
História/UNICAMP

 

Nuávamos solitários,
pai nosso que estás no céu,
e sorríamos
como sofrem teus bons filhos.

[Lúcia Sant'Anna - Filosofia/UNICAMP]


Pornografia

José Renato Noronha
[Artes Cênicas/UNICAMP]

Teatral:

Da porta de Banheiro à Pornografia Shakespeareniana

"O dedo obsceno do quadrante solar
está tocando o pau do meio-dia"

(William Shakespeare em Romeu e Julieta)

Memorial "Meta lingüístico" (e outras coisas? meta também):

(NOTA: Ficou famoso o desfile feito no carnaval daquele ano 1992 (?) por Joãosinho Trinta, tinha um pinto e uma buceta pelados lá, os jornais noticiaram... oh!!!!!! horror, horror.... ohhhhh! (interpretação de Shakespeare na prova de aptidão daquele ano). Mas... tudo acabou bem, o Brasil, mesmo que alguns escondam, gosta de alguma pornografia, e quem não gosta? Daí o criativo crítico do Correio Popular teve a idéia de comparar o fenômeno com o nosso nu artisticamente pornográfico àquele nu do Joãozinho. Oba! divulgação, num jornal com tiragem legal, para nossa querida peça e eu estava entrando na UNICAMP e entrando pelado nos Benditos Malditos (eu era menor e já fazia peça assim). A quem isto afeta? Segundo a pergunta do crítico, eu acho que a resposta foi: a ele!)

O Desacabaçamento:

Primeiro assisti à peça.
Me deslumbrei: eram Romeus e Julietas novinhos,
modernos, né?

Serviam vinhos e goiabada com queijo, eram Romeus e Julietas gostosos.

Comi-os.

Fui convidado a entrar na roda.
Tirei a roupa e virei Cúpido:
asas,
fraque,
gravata borboleta,
um arco e flecha tradicional,
com uma cúpida com seios à mostra.

E uma crítica que dizia:
Síndrome da Genitália Desnuda!...


Ficha técnica

Peça: Gira de Romeu e Julieta
Do texto de William Shakespeare

Grupo e Adaptação: Teatro dos Benditos Malditos _ Em 1992, eles estavam no segundo ano de Cênicas na UNICAMP, e eu no primeiro (um verdadeiro cabaço).

Direção, concepção, professor, cenários e figurinos: Márcio Tadeu.

Crítico citado: Laerte Zighiatti (acho que é assim o nome dele).

Jornal: Censurado...

Espaço cênico principal: Barracão das Artes Cênicas ("provisória e definitivamente" o nosso teatro na UNICAMP)

Público médio: uns cem estudantes universitários por apresentação.

Um sucesso.

Mas, no cenário:

-uma padiola;
- um velário mesmo;
- um balcão ou mesanino;
- duas cortinas: uma azul outra de molho de chaves;
- E, estrelando, uma PORTA DE BANHEIRO.

Estupro básico às concepções caretas: 

O básico é que Shakespeare só virou bardo porque os moralistas quiseram e seu Teatro, o Globe, era na zona de meretrício, ou, ao menos, perto; seu público era popular também e ficava entre os nobres que, por sua vez, ficavam escondi-dinhos atrás de telinhas para não levarem tomatadas. E frases com as lá de cima do texto (para não ofender dizendo na cabeça) não eram incomuns, e a Julieta era um ator adolescente do sexo masculino.

Nossa versão não era "a punheta com o Leonardo di Caprio" (leia-se: filme "Romeu + Julieta"): O Romeu morria com overdose não havia um só segundo de cena de olhares melosos, era outra masturbação visual contra qualidade e autenticidade, eu gostava... e as mudanças eram ao vivo: a cena do Romeu com a Julieta do Sidney com a linda Walquíria era de uma eroticidade ferozmente poética. As músicas eram de adolescentes legais na época, tinha até... não se choquem leitores ilimitados e modernos... a trilha tinha músicas da Legião Urbana; para os pudicos elas incluíam Como os nossos pais com a Elis e Una furtiva lacrima, uma ária acho que de Donizetti. Se alguém quiser saber? eu ficava pelado, mas meu pau

não endurecia e um dos motivos era frio e o outro é que eu tinha vergonha... tadinho, só tinha 17 aninhos. Cabaço... era a primeira peça que eu fazia na UNICAMP. Nos achávamos radicais? Talvez, mas depois dos "Jovens Infelizes" do Pasollini, fica difícil falar que éramos. Mas tinha a PORTA DE BANHEIRO.

A PORTA DE BANHEIRO é além de um meio de comunicação e agenda de encontros uma forma de expressão pornográfica. Tínhamos lá uma, era o quarto da Julieta e a porta do seu mausoléu: nela Páris era um viado, Fatalitas era a porta, o Pau era no Cú com acento no Páris, Romeu tinha comido o cu de Rosalina; tinha pintos, bucetas e cus desenhados, e também a frase "Ayrton Sena Morreu"... Pura pornografia teatral, e o crítico nem notou, ele só olhou o pau e os peitos...



Um dia ou um século na Cruz da Menina

(Narrativa em 15 cenas e 9 linhas de fuga)

Elisa Mariana de Medeiros Nóbrega
[Mestrado em História/UNICAMP]

(continuação...)

CENA 3

Nirinha, desde que voltou de Fortaleza, foi trabalhar na cantina de sua irmã, Ilva, na Cruz da Menina. Depois de Genival, era sempre uma das primeiras a chegar. Vinha todos os dias de moto-taxi e, a não ser nos finais de semana, achava aquele lugar esquecido por Deus. Não tinha muito movimento, por isso não ligava de sair com bermudas mostrando suas varizes. Mas, como esse dia era um domingo, estava já com o espírito pronto e a roupa adequada. Abriu a cantina, colocou água para ferver e estava tirando as mesas e as cadeiras para o pátio quando viu Seu Genival se aproximando, todo amarrotado, cara inchada de sono e ainda bocejando. <<E aí, Seu Genival, alguma novidade?>>. <<Não, senhora. Tá tudo na paz de Deus>>. <<O café já vai sair>>, falou Nirinha, quando escutou o apito do bule. Nesse momento, avistou também sua irmã Ilva chegando, cheia de pacotes. Devem ser os pastéis, pensa, já coando o pó preto.

Sua irmã, toda esbaforida, já chega matraqueando. Nirinha achava engraçado que sua irmã, crente da Assembléia de Deus, trabalhasse ali, mas, como o negócio era ganhar a vida, foi logo tratando de pegar as garrafas secas de água mineral para vender ao povo que vinha atrás de curas milagrosas. Arrumando-as por sobre o balcão, calculou que nesse dia ela ia tirar o dinheiro da Festa do Patos Tênis Clube, só com a venda das garrafinhas. Sabia que as pessoas que vinham de caravana de Juazeiro do Norte iam parar na Cruz da Menina para levar a aguinha benta.

Dona Maria José, crente de Santa Francisca há mais de vinte anos, desde que conseguira alcançar


W. F. Pereira, 1997.


sua prece e clarear um negócio na sua casa, ia todos os domingos de manhã, depois da missa das cinco na Catedral, rezar na capela e depois aproveitava para tomar um café com as meninas na cantina. Mas, nesse dia, estranhou tanta garrafa vazia no balcão e acabou perguntando pra Ilva o porquê daquilo. <<Isso é coisa da minha irmã>>. Nirinha, rapidamente, ergue as sobrancelhas, abre sua boca um grande sorriso e responde-lhe: <<A senhora não sabia, Dona Maria, que a água ali das pedras, onde acharam a menina, é benta? Então, aqui na lanchonete, os visitantes sempre compram a mineral, jogam fora a água, para utilizarem o recipiente, levando a benta com eles. Agora, eu já faço diferente, não gosto da água instruída, por isso, guardo os recipientes vazios para eles levarem a água das pedras para casa. Aí, os visitantes levam porque ficam curados de conjunto devite, dores, qualquer mal... <<Mas essa água não é cheia de bicho?>>. <<É, Dona Maria, tem muitos cururus dentro d'água, mas os visitantes tiram os cocozinhos de lado e limpam os olhos. E depois pegam minhas garrafinhas para levarem um pouco dessa água milagrosa pros parentes. Agora, Dona Maria, a senhora tá vendo aquelas grades de garrafas secas de soda limonada? Pois é, essas garrafas ficaram secas por causa de outro remédio santo que eu vendi aqui. Semana passada, veio aqui um ônibus cheio de turistas se queixando de uma grande dor de barriga, por causa de uma comida de um hotel em Juazeiro do Norte. Depois de terem

comido todas as bananas que tinham na lanchonete, me lembrei da soda com goma... foi uma inspiração divina. Vendi muita soda e era só o pessoal tomando e subindo pra Capela, dizendo para os companheiros "ali tem um santo remédio bento da menina". E quando terminou, a gente tinha vendido todas as sodas e as gomas, e o pessoal foi para casa curado. É santa ou não é? Eu, mesma, fiquei com o braço doendo de tanto abrir garrafa de refrigerante>>. Dona Maria benzeu-se e perguntou toda admirada: <<Esse remédio foi uma inspiração da santa?>>.

Ilva, já impressionada com a disfarçatez da irmã, responde antes: <<Foi a inspiração do real que ela viu entrando no caixa, porque, na verdade, a goma tinha sido peneirada para fazer tapioca nos domingos, mas com a concorrência que nós temos lá fora do parque, fez com que diminuíssemos a venda da tapioca, que ficou guardada. Mas, nesse dia, nem se perdeu a goma e o real caiu aí no caixa. A santa, que eu sei, é o dinheiro no bolso. E agora, Nirinha, deixe de conversa mole e vá aprontar os lanches, que tá chegando um bando de mulher descalça, com cara de fome>>.

CENA 4

Foi uma longa caminhada, pensou Beatriz, agradecida pela grande graça que tinha alcançado. Estou, para sempre, gratificante com essa santa. Lembrou-se de todo desespero que tinha vivido, de toda sua de


sesperança e de seus amigos, quando quiseram abrir a Associação das Pequenas Indústrias de Quixaba e o banco não tinha aprovado o financiamento, porque dois dos associados, seus vizinhos, tinham os nomes presos no SPC, até o momento em que Ela tinha parecido à sua frente, vendo ela em favor, dizendo que se fosse pedido, Ela daria essa graça a todos nós. Tinha sido um longo percurso, mas Beatriz acreditava que se fosse necessário, fariam tudo de novo, ainda que o sol esquentasse mais o asfalto, ainda que o percurso fosse mais longo, tinha a certeza de que, ainda assim, sairiam em nova romaria de Quixaba, descalços como Jesus no batizado, agradecer e pagar pelo milagre alcançado, afinal, estavam todos em estado de graça, pensava, olhando em volta, os seus amigos, a sua nova família, pois era assim que pensava em todos, como uma união abençoada por Santa Francisca. Beatriz já tinha ouvido falar muito dos feitos da santa de Patos, mas morando na cidade de Quixaba, jamais pensara em recorrer às graças dela, até o dia em que fora abençoada com sua visita, recebendo o seu sinal, vendo aquela aparição sagrada.

 

LINHA DE FUGA 2

Uma surpresa no meu Tempo-menino em Natal foi ter visto na Missa do Domingo, solene e concorrida, na Matriz, hoje Sé, uma ou outra senhora de primeira entrância social, bem vestida e ornada de jóias,
imperturbável e sisuda, mostrando os pés sem sapatos e meias. A classe do Pé-no-chão constituía a inicial humilde, subalterna, desprotegida. Difícil, presentemente, deparar pés sem alpercatas mesmo pelos sertões de plantio de gado. Naquele fabuloso 1905 era a "constante rítmica". Incompreensível para mim deparar uma dama imperiosa, de olhos duros e transelins no anafado pescoço, andando de pés nus, como qual mendiga de porta-em-porta. Depois, os pés ao natural, circulavam nas procissões dos Passos, senhores, senhoras e gente do Povo. Meninos, eu vi! do Salvador a Teresina, quando era possível encontrar pelo Brasil inteiro. Está raro mas não de todo desapareceu. Vi no Rio de Janeiro, Dia de S. Sebastião em 1969, Missa campal celebrada pelo Cardeal-Arcebispo D. Jaime de Barros Câmara. Não em matrona mas numa provocante inocente, de inquieta exibição. Minha mãe explicava ser "promessa".
 

Sem título. Paulo Bocca. Pastel. 1998.


Deixar assim de lado a condição de sujeito

e sujeitar-se, objeto, a todos os sonhos.
Para algo há de servir este momento,
em alguma trama significará.
Abrir, desmetaforicamente abrir o corpo,
como se ele não fosse interativo com nada.
Expor, lubricamente expor as mínimas chagas
e aguardar que se verta a quente cera.
Apertar, asfixiadamente apertar,
como se apertaria o corpo amado que morre.
Cortar
como se cortaria sem pensar a gangrenada perna.
Calar
como se calaria o delito grave de um filho.

 

Maria Lúcia Verdi _ poeta

[trecho de "O vão em vozes do ventre", Projeto `EROSESCORRE' _ Centro Cultural da CEF, Brasília, de 9 a 28 de novembro de 1999]

Ilustr.: Paulo Bocca. Carvão. 1999.


Ilustr.: Paulo Bocca. Carvão. 1999.

Vem, meu bailarino,
e pousa sobre meu corpo
a enigmática tranqüilidade
de teus olhos
tão vivos,
tão meigos.

Arrasta-me com teus braços
talhados em ritmo e graça,
tua boca onde resguardas
toda candura,
toda branca ternura
e toda toda força
que busco, brusco.

Mal posso procecer em meu dia,
se só o que tenho é a figura,
d.e.s... f.a..l..e... c.e....n.t..e,
de uma memória que desbota tua imagem
tão singular,
e tão, tão suave.


ÉPIGRAME
La Fontaine _ (França, 1621 _ 1695)

Aimons, foutons, ce sont plaisirs
Qu'il ne faut pas que l'on sépare;
La jouissance et les désirs
Sont ce que l'âme a de plus rare.
D'un vit, d'un con, et de deux coeurs,
Naît un accord plein de douceurs,
Que les dévôts blâment sans cause.
Amarillis, pensez-y bien:
Aimer sans foutre est peu de chose
Foutre sans aimer ce n'est rien.

Ilustr.: Eurico Lopes. Nanquim s/ papel. 1999. ECA/USP.

EPIGRAMA
[Trad.: Wilian F. Pereira]

Amar e foder não separo
por mais que a idéia me tente,
pois é em noss'alma o mais raro
o gozo, o desejo e o deleite.
De cona, pau e corações
Nascem as mais doces paixões,
Que o crente rejeita, o louco.
Reflete, minha doce amada:
Amar sem foder é tão pouco,
Foder sem amar não é nada.


A WHORE
Rochester, Conde de (1647 _ 1680)

She was so exquisite a whore
That in the belly of her mother
She turned her cunt so right before
Her father fucked them both together.

Ela era de tal modo uma puta,
Que antes mesmo de nascer
Virou sua boceta, diminuta,
Para a ambas o pai foder.

[Trad.: Wilian F. Pereira]

Ilustr.: Eurico Lopes. Nanquim s/ papel. 1999.

A monarch I'll be when I lie by thy side,
And thy pretty hand my sceptre shall guide.

De wit's Cabinet, aprox. 1700.

Monarca eu serei quando contigo dormir
e tua mão, linda!, o meu cetro conduzir.

[Trad.: Wilian F. Pereira]


Ilustr.: Eurico Lopes. Nanquim s/ papel. 1999.

BAWDY CAN BE SANE

D. H. Lawrence (Inglaterra, 1855 _ 1930)

Bawdy can be sane and wholesome,
in fact a little bawdy is necessary in every life
to keep it sane and wholesome.

 

And a little whoring can be sane and wholesome.
In fact a little whoring is necessary in every life
to keep it sane and wholesome.

Even sodomy can be sane and wholesome
granted there is an exchange of genuine feeling.

But get any of them on the brain, and they become pernicious:
bawdy on the brain becomes obscenity, vicious.
Whoring on the brain becomes really syphilitic
and sodomy on the brain becomes a mission,
all the lot of them, vice, missions, etc., insanely unhealthy.

In the same way, chastity in its hour is sweet and wholesome.
But chastity on the brain is a vice, a perversion.
And rigid suppression of all bawdy, whoring or other such commerce
is a straight way to raving insanity.
The fifth generation of puritans, when it isn't obscenely profligate,
is idiot. So you've got to choose.


A indecência pode ser saudável
[Trad.: José Paulo Paes]

A indecência pode ser normal, saudável;
na verdade, um pouco de indecência é necessário em toda vida
para a manter normal, saudável.

E um pouco de putaria pode ser normal, saudável.
Na verdade, um pouco de putaria é necessário em toda vida
para a manter normal, saudável.

Mesmo a sodomia pode ser normal, saudável,
desde que haja troca de sentimento verdadeiro.

Mas se alguma delas for para o cérebro, aí se torna perniciosa:
a indecência no cérebro se torna obscena, viciosa,
a putaria no cérebro se torna sifilítica
e a sodomia no cérebro se torna uma missão,
tudo, vício, missão, insanamente mórbido.

Do mesmo modo, a castidade na hora própria é normal e bonita.
Mas a castidade no cérebro é vício, perversão.
E a rígida supressão de toda e qualquer indecência, putaria e relações assim
leva direto a furiosa insanidade.

E a quinta geração de puritanos, se não for obscenamente depravada,
é idiota.
Por isso, você tem de escolher.

Ilustr.: Eurico Lopes. Nanquim s/ papel. 1999.


SONNET

Malherbe (França, 1555 _ 1628)

J'avais passé quinze ans, les premiers de ma vie,
Sans avoir jamais sçeu quel estoit cet effort
Où le branle du cu fait que l'âme s'endort,
Quand l'homme a dans un con son ardeur assouvie.

Ce n'estoit pas pourtant qu'une éternelle envie
Ne me fit désirer une si douce mort,
Mais le vit que j'avois n'estoit pas assez fort
Pour rendre comme il faut une Dame servie.

Je travaille depuis, et de jour, et de nuit,
A regagner ma perte, et le temps qui s'enfuit,
Mais dejà l'Occident menace mes journées...

O Dieu! je vous appelle, aydez à ma vertu:
Pour un acte si doux, allongez mes années,
Ou me rendez le temps que je n'ai pas foutu!

 

Ilustr.: Eurico Lopes. Nanquim s/ papel. 1999.


Ilustr.: Eurico Lopes. Nanquim s/ papel. 1999.

SONETO
[Trad. Wilian F. Pereira]

Passei quinze anos, os primeiros de minha vida,
Sem jamais conhecer esse poder
Que o balanço de um cu tem de a alma entorpecer,
Quando a ânsia viril é na cona dissolvida.

Não era, portanto, que tal vontade veemente
Não me fizesse desejar tão doce liberdade,
Mas meu membro não era forte o suficiente
Para deixar bem servida uma mulher de verdade.

Trabalho desde então, dia e noite, noite e dia,
Pra compensar tal frustração, sem alento,
Mas já o crepúsculo ameaça os meus dias...

Oh, Deus, ajudai-me! Virtuoso eu seria
Se por um ato bondoso, alongasses meu curto tempo
Ou me devolvesses o de quando eu não fodia.


O Professor Filósofo

Conto de
Marquês de Sade

De todas as ciências que se inculca na cabeça de uma criança quando se trabalha em sua educação, os mistérios do cristianismo, ainda que uma das mais sublimes matérias dessa educação, sem dúvida não são, entretanto, aquelas que se introjetam com mais facilidade no seu jovem espírito. Persuadir, por exemplo, um jovem de catorze ou quinze anos de que Deus pai e Deus filho são apenas um, de que o filho é consubstancial com respeito ao pai e que o pai o é com respeito ao filho, etc, tudo isso, por mais necessário à felicidade da vida, é, contudo, mais difícil de fazer entender do que a álgebra, e quando queremos obter êxito, somos obrigados a empregar certos procedimentos físicos, certas explicações concretas que, por mais que desproporcionais, facultam, todavia, a um jovem, compreensão do objeto misterioso.
Ninguém estava mais profundamente afeito a esse método do que o abade Du Parquet, preceptor do jovem conde deNerceuil, de mais ou menos quinze anos e com o mais belo rosto que é possível ver.

Senhor abade, dizia diariamente o pequeno conde a seu professor _ na verdade, a consubstanciação é algo que está além das minhas forças; é-me absolutamente impossível compreender que duas pessoas possam formar uma só: explicai-me esse mistério, rogo-vos, ou pelo menos colocai-o a meu alcance.

O honesto abade, orgulhoso de obter êxito em sua educação, contente de poder proporcionar ao aluno tudo o que poderia fazer dele, um dia, uma pessoa de bem, imaginou um meio bastante agradável de dirimir as dificuldades que embaraçavam o conde, e esse meio, tomado à natureza, devia necessariamente surtir efeito. Mandou que buscassem em sua casa uma jovem de treze a catorze anos, e, tendo instruído bem a mimosa, fez com que se unisse a seu jovem aluno.

Pois bem, disse-lhe o abade _ agora, meu amigo, concebas o mistério da consubstanciação: compreendes com menos dificuldade que é possível que duas pessoas constituam uma só?

Oh! meu Deus, sim, senhor abade, diz o encantador energúmeno _ agora compreendo tudo com uma facilidade surpreendente; não me admira esse mistério constituir, segundo se diz, toda a alegria das pessoas celestiais, pois é bem agradável quando se é dois a divertir-se em fazer um só.


Dias depois, o pequeno conde pediu ao professor que lhe desse outra aula, porque, conforme afirmava, algo havia ainda "no mistério" que ele não compreendia muito bem, e que só poderia ser explicado celebrando-o uma vez mais, assim como já o fizera. O complacente abade, a quem tal cena diverte tanto quanto a seu aluno, manda trazer de volta a jovem, e a lição recomeça, mas desta vez, o abade particularmente emocionado com a deliciosa visão que lhe apresentava o belo pequeno de Nerceuil consubstanciando-se com sua companheira, não pôde evitar colocar-se como o terceiro na explicação da parábola evangélica, e as belezas por que suas mãos haviam de deslizar para tanto acabaram inflamando-o totalmente.

Parece-me que vai demasiado rápido, diz Du Parquet, agarrando os quadris do pequeno conde _ muita elasticidade nos movimentos, de onde resulta que a conjunção, não sendo mais tão íntima, apresenta bem menos a imagem do mistério que se procura aqui demonstrar... Se fixássemos, sim... dessa maneira, diz o velhaco, devolvendo a seu aluno o que este empresta à jovem.

 

Ah! Oh! meu Deus, o senhor me faz mal _ diz o jovem _ mas essa cerimônia parece-me inútil; o que ela me acrescenta com relação ao mistério?

Por Deus! _ diz o abade, balbuciando de prazer _ não vês, caro amigo, que te ensino tudo ao mesmo tempo? É a trindade, meu filho... é a trindade que hoje te explico; mais cinco ou seis lições iguais a esta e serás doutor na Sorbonne.

FONTE: SADE. Contos Libertinos. Trad. Plínio A. Coelho e Alípio C. F. Neto. Col. "Sátiros e Bacantes", vol 1. São Paulo: Imaginário, 1997.


Introdução ao

Kama Sutra

Alain Daniélou

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os objetivos da vida

Desde tempos muito remotos, por vezes mesmo anteriores ao que chamamos `pré-história', pensadores indianos têm se perguntado questões acerca da natureza do mundo e do papel do homem dentro da criação. Eles consideravam a matéria como sendo formada por átomos, células constituídas por elementos energéticos, organizadas de acordo com fórmulas matemáticas que definem os vários elementos sob formas relativamente estáveis e permanentes.

Já a vida apresenta um problema diferente: sendo baseada em fórmulas, com códigos definindo as peculiaridades das várias espécies, ela somente existe se transmite-se por meio de ligações temporárias. A espécie é permanente, sim, mas cada ligação só se dá por um dado período finito de tempo. Uma vez tendo transmitido o código que define sua natureza, ela [a espécie] é automaticamente destruída. Durante sua breve existência, cada ligação necessita para sua própria subsistência e auto-transmissão _ consumir energia, nutrir-se e proteger-se. Além disso, existindo apenas como uma espécie, os seres formam comunidades independentes e devem observar regras de comportamento social. Deste modo, possuem obrigações _ a Ética que formam parte da natureza deles. Isto é particularmente importante para a espécie humana.

A vida, assim, necessita de três tipos de atividade: i) assegurar sua sobrevivência, seus meios de existência e sua nutrição; ii) perfazer sua reprodução de acordo com formas de atividade geralmente ligadas à sexualidade; iii) por último, estabelecer regras de comportamento que permitam a diferentes indivíduos realizarem seus papéis dentro do contexto da espécie. Na sociedade humana, isto é representado como três necessidades, três objetivos da vida: bens materiais (artha) asseguram a sobrevivência; a prática erótica (kama) garante a transmissão da vida; e regras de comportamento, uma natureza moral (dharma) garante a coesão e duração da espécie.

Um quarto objetivo representa a percepção do sobrenatural e a existência continuada de certas aquisições da mente além dos limites da vida, e é chamada libertação (moksha). Este aspecto é contemplado pelo que se chama religião, mas permanece um domínio separado dos outros, por ser particular à humanidade, mesmo que possivelmente haja algum tipo de percepção do sobrenatural entre outras espécies.

Estes objetivos são mencionados nos mais antigos textos os Vedas, os Puranas, as Leis de Manu, o Mahabharata, etc., mas suas definições práticas nos são conhecidas principalmente pelos códigos estabelecidos durante o que é chamado `o período dos Sutras', que, de acordo com Max Muller, vai do nascimento de Buda (500 a.C.) à ascensão de Ashoka (270 a.C.). A contar a partir do sétimo século a.C., os textos básicos a respeito dos objetivos da vida [os três primeiros] foram transcritos no Artha Shastra, Dharma Shastra e Kama Shastra.

O autor do Kama Sutra

Vasyayana parece ter sido um brâmane e grande literário, tendo vivido na cidade de Pataliputra por volta do século IV a.C. (período Gupta), tempo de ampla e generalizada efervescência cultural. De acordo com o autor, as várias obras pertencentes ao Kama Shastra eram de difícil acesso; por isso, dedicou-se a coletá-los e resumir em seu Kama Sutra, que assim tornou-se a obra clássica no assunto.

Foi enquanto esteve na cidade de Benares estudando assuntos religiosos que Vatsyayana conseguiu coletar os trabalhos dos quais extraiu sua inspiração e dos quais copiou importantes passagens. Assim, o Kama Sutra não pretende ser um trabalho original, mas uma compilação. O autor, por outro lado, afirma que ele mesmo verificou na prática e por experiência pessoal as práticas que ele descreve.

O Kama Sutra não é um trabalho pornográfico. É, antes, meramente um estudo imparcial e sistemático de um dos aspectos essenciais da existência. Em primeiro lugar, e acima de tudo, é o retrato da arte de viver para o cidadão refinado e civilizado, completando na esfera do amor, do erotismo e dos prazeres da vida aqueles tratados paralelos sobre política e economia e 

sobre ética, respectivamente, o Artha Shastra e o Dharma Shastra, ao qual faz contínuas referências.

O erotismo é primeiramente uma busca de prazer, e o objetivo último das técnicas do amor é atingir um paroxismo considerado pelos Upanishads como a percepção do estado divino, que é de deleite infinito. Os refinamentos do amor e os prazeres que incluem música e outras artes apenas são possíveis numa civilização próspera, razão pela qual o Kama Shastra, a arte do amor, está diretamente ligada a Artha Shastra, as regras da prosperidade e a arte de ganhar dinheiro. A pobreza não é uma virtude. De acordo com Vatsyayana, de fato, representa um obstáculo, e não apenas ao prazer, mas igualmente à ética e à virtude. A moralidade é um luxo raramente desfrutável pelos muito pobres.

O texto. Como é o costume em todos as obras técnicas hindus, incluindo dicionário, gramática e tratados científicos, o texto do Kama Sutra é escrito em um estilo denso e poético (sutra), para ser memorizado com explicações dadas por um professor. Assim, os comentários são parte integral do ensinamento, sem os quais o texto estaria incompleto. Considerado um tratado de ciência complementar à tradição religiosa, o Kama Sutra toma parte do ensino tradicional a ser ministrado a crianças e adolescentes.

Sociedade. `Sociedade' na terminologia do livro é a sociedade hierárquica da Índia, com suas castas _ brâmanes, príncipes-guerreiros, mercadores, monges e corporações de trabalhadores _ co-operando sem nenhum problema. Casamento e procriação entre grupos sociais diferentes não são recomendados aos interesses das crianças, mas relações amorosas gozam de grande liberdade [note-se que estamos falando da Índia nos tempos de Vatsyayana]. Nem mesmo os monges budistas escapam ao corpo do texto.

O cidadão

O Kama Sutra é essencialmente endereçado ao cidadão (nagaraka), ou seja: um burguês, saudável e culto, homem, mercador ou servidor público, amante das artes e habitante numa grande cidade. O cidadão é sobretudo um comerciante ou proprietário de terras, aguardando ou a chegada de navios cheios de especiarias ou a colheita dos grãos de suas terras. As artes exercem papel importante em sua vida, especialmente a música, a dança, a pintura, o teatro e a literatura.

Apesar de as técnicas eróticas abrangerem todos os homens, os refinamentos da arte do amor são somente acessíveis ao que possui uma habitação agradável, com camas confortáveis, banheiros, salas de recepção, jardins, flores e incensos.

Acrescente-se, por curiosidade, o dado de que o cidadão não era um vegetariano. Comia todos os tipos de carne e bebia vinhos e bebidas fortes tanto em recepções sociais ou enquanto fazia amor. Uma bebida a base da maconha indiana, hoje conhecida como bhang, era também amplamente empregada.

As mulheres

No tempo dos Babharavyas, como no tempo de Vatsyayana, as mulheres gozavam de grande liberdade. O Kama Sutra obviamente descreve os deveres da mulher respeitável, atendendo somente a sua família e seu lar; mas, ao mesmo tempo, indica também todos os caminhos para seduzir uma mulher casada e convidá-la a trair o seu marido. Por razões formais, o autor cita os vários tipos de casamento mencionados nos livros das leis, mas recomenda o casamento por amor, ou casamento gandharva, e explica como seduzir uma garota _ que freqüentemente parece ainda criança _ com ofertas de bonecas e de presentes.

O casamento de viúvas, posteriormente proibido, era ainda aceito. Apesar de a poligamia ser algo bastante disseminado, Vatsyayana canta as vantagens de se ter apenas uma esposa. É sobretudo quando trata do harém real que descreve _ e não sem um tanto de humor _ o lado por vezes cansativo de uma obrigação como a do soberano de satisfazer todas as suas numerosas esposas e ainda lidar com as intrigas do seráglio.

Suttee, o sacrifício da 

viúva na pira de seu marido, só é mencionado no comentário moderno.

As cortesãs

As cortesãs tinham importante papel na sociedade urbana: eram os ornamentos da cidade. Familiares com as artes, é por elas que as técnicas refinadas da música e da dança eram transmitidos, papel que continuam a exercer ainda hoje. Essas mulheres podiam movimentar considerável quantidade de dinheiro e fazer generosas contribuições a obras sociais e religiosas, tais como a construção de templos e tanques para banhos rituais.

Durante o período Dattaka, quando o Artha Shastra foi escrito, o preço das prostitutas de classificação inferior era fixado pelo governo, e, sim, elas pagavam impostos. No tempo de Vatsyayana, elas já eram livres para negociarem seus próprios preços.

 

Variantes sexuais

O lesbianismo é descrito em 

detalhes, bem como a inversão dos papéis por uma mulher dominadora. O homossexua-lismo masculino constitui toda uma parte da vida sexual e várias práticas homossexuais são descritas em detalhes. Travestis exercem um papel na vida pública, e suas presenças em cerimônias de casamento e religiosas é considerada um símbolo de boa sorte até hoje.

Todas as variações sexuais, inclusive relações com animais, são mencionados no Kama Sutra e são representados com grande ênfase nas fachadas de grandes templos, tais como os de Khajuharo. Acreditava-se que tais esculturas protegessem os prédios contra raios.

Puritanismo na Índia moderna

No país do Kama Sutra, onde o êxtase amoroso é assimilado à experiência mística, àquela percepção do divino que é supremo deleite, o purita

nismo da Índia moderna, potencializada por preconceitos islâmicos e anglo-saxões, é o que mais nos surpreende (apesar de estar restrito basicamente às classes médias com educação inglesa).

Mahatma Gandhi, educado na Inglaterra, mandou levas de seus discípulos esmagarem representações eróticas nos templos. Somente o poeta Rabindranath Tagore quem conseguiu impedir esse massacre iconoclasta.

O país do Kama Sutra foi, assim, relegado à condição de um dos mais atrasados países em assuntos tangentes à liberdade. O viajante inteligente, contudo, pode viajar fora dos círculos oficiais, encontrar experiências amorosas que fortemente denotam que o povo da Índia não esqueceu sequer uma linha do que ensina o milenar livro das artes do amor.

 

[N. do trad.: Alain Daniélou é responsável por uma recente e aclamada tradução do texto do Kama Sutra, tendo comparado diversas versões em Hindi, Sânscrito, Inglês e Bengali. Sua versão destaca-se da anterior, do inglês Sir Richard Burton, que pecava por traduzir "consolo" por "remédio", "lésbica" por "mulher corrupta" e assim por diante. O tradutor é considerado uma das maiores autoridades em assuntos de cultura, história, artes e religiões da Índia, tendo publicado mais de trinta livros].

FONTE:

VATSYAYANA. The complete Kama Sutra: the first unabridged modern translation of the classic indian text / translated by Alain Daniélou. [Tradução e adaptação: Wilian Fernandes Pereira]. Rochester: Park Street Press, 1994.

Ilustrações: http://www.tantra.org


O DEDO

O dedo toca a dourada testa;
Desce e toca os doces lábios;

Dedica-se aos desnudos seios;
Delicia-se em decifrar o ventre;
Domina a umedecida vagina;
Duplica-se ao desmistificar as pernas;
Despede-se e dorme debruçado em outros dedos.


Brasília, 09/08/1999

Fabiano Nogueira da Gama Cardoso _ Letras/UnB


PROVAGINA

(erópni em homenagem a um artigo
de Eliane Robert Moraes)

ali onde a musculatura retesa

e a cultura enfesa

num jogo de não e de sim

onde a procura

já não sabe de si

e a loucura

é seu estar ali

aqui

tão colada ao êxtase

que escorre entre peles

aspirando a mistura

de perfume e cheiro

artifício e natura

aqui está você

desejo em carne pura

abismo de mistérios gozosos

fenda vertical dos meus anseios

segredo de metamorfoses

desmesura

Orl van Andi

agosto-1997

NOTA: `opni' = `objeto poético não-identificado'

Sem título. Mariana Meloni. Modelo: Fernanda Raquel. 1998.


Ilustr.: João Carlos Luengo, 2000.


humor

SONHOS DE UMA NOITE DE VERÃO

Anônimo Desconhecido

Satânico é meu pensamento a teu respeito e ardente é o meu desejo de apertar-te em minha mão, numa sede de vingança incontestável pelo que me fizeste ontem. A noite era quente e calma, e eu estava em minha cama quando, sorrateiramente, te aproximaste. Encostaste o teu corpo sem roupa no meu corpo nu, sem o mínimo pudor. Percebendo minha aparente indiferença, te aconchegaste a mim e mordeste-me sem escrúpulos até nos mais íntimos lugares. Eu adormeci... Hoje, quando acordei, procurei-te numa ânsia ardente, mas em vão. Deixaste em meu corpo e no lençol provas irrefutáveis do que entre nós ocorreu durante a noite. Esta noite recolho-me mais cedo para, na mesma cama, te esperar... Quando chegares, quero te agarrar com avidez e força. Quero te apertar com todas as forças de minhas mãos. Nao haverá parte de teu corpo em que meus dedos não passarão. Só descansarei quando vir sair o sangue quente de teu corpo. Só assim, livrar-me-ei de ti, pernilongo filho duma puta!
                                    

A IMAGEM LÚBRICA EM MOVIMENTO

Leandro Vieira

Pressupõe-se que a sexualidade sempre tenha estado presente, de um modo ou de outro, nas diversas formas de representação do homem, constituindo uma tradição que remonta às pinturas rupestres do Paleolítico superior, onde a arte, revestida de magia e desejo, sacralizava não só os ritos de caça como também os de fertilidade. A partir daí, a civilização Ocidental vem construindo incessantemente o seu acervo erótico: itinerário que perpassa a literatura, as artes plásticas, a fotografia e, com a invenção do cinema, a imagem em movimento.

Assim, a imagem lúbrica apropria-se de um novo suporte e, animada, é plasmada nas telas das salas de exibição particulares. Na França, esses filmes de curta-metragem passaram a ser conhecidos como vignettes e exibiam as populares bailarinas de seios nus. Nos Estados Unidos este formato recebeu o nome de nudies, sendo que no início do século já há a incidência de curtas com sexo explícito, isto é, com penetração real e em primeiro plano (stag movies).

Porém, ao contrário do cinema convencional, que nesta época já dispunha de salas de exibição nos

Deve dizer-se então que desde a origem da arte até os nossos dias, no domínio do sexo, não há nada de novo, a não ser a técnica e a maneira de tratar as formas e as cores?

Gilles Néret1

grandes centros urbanos, a pornografia manteve-se restrita à marginalidade: sessões especiais em salas secretas, constituindo um entretenimento para poucos. Hoje, diante da veloz proliferação imagética que satura a existência de duplos ao infinito, esta aura de proibido que ronda as representações da sexualidade se encontra um tanto desbotada, persistindo somente em práticas consideradas extremamente ilegais em nossa sociedade, como os snuff movies2 e os vídeos de pedofilia.

A clandestinidade da imagem pornô é sua própria inerência, sendo a obscenidade, posta em cena, peculiar. A necessidade da exibição fadada ao espaço privado faz do pornô o único gênero private por natureza.

Assim os loops (ou blue movies) seguiam uma carreira errante e obscura, onde o material produzido (em super 8 e/ou 16 mm) era irremediavelmente destinado aos freqüentadores de sex shops e peep shows.

A fuga da alcova somente se deu nos anos 70, graças ao estrondoso sucesso comercial de "Garganta Profunda" (Deep throat, de Gerardo Damiano, 1972), um dos primeiros passos, senão o divisor de águas, para uma espécie de legitimação nos grandes circuitos da imagem lúbrica em movimento. " Garganta Profunda" efetuou a singular proeza de migrar o filme pornô de uma pequena sala de projeção da rua 49, em Manhattan, para as manchetes nacionais, trazendo consigo a abertura para outras obras que almejaram, e em alguns casos conseguiram, efetivar o temido e maldito casamento entre arte cinematográfica e pornografia.

Ainda em 72 outros dois filmes vão constituir a santíssima trindade da sacanagem, configurando a década como a época de ouro do cinema pornô: "O Diabo na Carne de Miss Jones" (The Devil in Miss Jones, de Gerardo Damiano) e "Atrás da Porta Verde" (Behind the Green Door, dos irmãos Mitchell). Juntos, estes três filmes, ainda hoje compõem uma tríade considerada rigorosamente clássica dentro da esfera pornográfica.

Após esse rompimento com a barreira do circuito comercial das salas de exibição, a indústria do "en

tretenimento para adultos" (eufemismo absurdo muito utilizado pelos norte-americanos) foi rapidamente se fortalecendo e sofisticando-se. Visto que, uma vez instalado em novo território, o filme pornô via-se na obrigação de concorrer de igual para igual com o produto hollywoodiano, ocasionando um suntuoso investimento profissional: um padrão de qualidade, técnica e artística, o mais elevado possível.

Entretanto, a necessidade imanente do obsceno pela esfera privada, e a descoberta do vídeo pelos produtores, nos anos 80, assassinou o cinema pornográfico. Não deu certo: a pretensão de Jack Horner3 por uma pornografia de qualidade, bem "interpretada" e com roteiro coerente foi por água abaixo. Afogada pelo voraz crescimento da tecnologia videográfica.

Na verdade, ninguém mais queria investir na película cinematográfica, infinitamente mais cara do que a fita magnética. Isto fez que a imagem lúbrica, agora eletrônica, abandonasse a fruição coletiva das salas de exibição e retornasse para o espaço íntimo do lar, através da tela pequena do televisor acoplado ao vídeo-cassete.

E realmente foram as fitas de sexo explícito que consolidaram o crescente mercado do vídeo, no início da década de 80 (até hoje elas respondem por cerca de 40% das locações). Por motivos óbvios, na privacidade do lar, e não em salas públicas, a pornografia encontrou seu espaço privilegiado.

 


Atualmente, com o mercado pornô-videográfico estabilizado e expandindo seu território através da revolução digital, a imagem lúbrica pode ser encontrada também na Internet, DVDs ou CD-ROMs. Quanto ao cinema pornô, este morreu mesmo e não será ressuscitado. O curioso é que até as supostas salas de cinema que, ainda hoje, persistem na exibição de filmes de sexo, na realidade nada mais fazem do que projetar vídeos na tela. Um rolo com película cinematográfica de sacanagem só mesmo em um museu de arte erótica...

Por enquanto, fica aqui o recado do crítico Walter Mago: "Só há um limite para as fantasias sexuais, o determinado pelo prazer. Por isso não tenha medo de tê-las ou de vivê-las, ainda que seja vendo um filme em vídeo".4 A vídeo-locadora mais perto aguarda você.

Notas:

1 Gilles NÉRET. Arte Erótica. Lisboa: Taschen, 1994. p. 10.

2 Situado entre o fascínio que uma lenda contemporânea traz consigo e o medo de uma realidade evidente, os snuff movies e a pornografia envolvendo menores são, de fato, um atestado cabal daquilo que, em outro contexto, Paul Virilio chamou de tecnofilia: a renovação das formas de transgressão propiciada pelo advento de novas tecnologias.

3 O diretor pornô, interpretado por Burt Reynolds em "Prazer sem Limites" (Boogie Nights, 1997), filme de Paul Thomas Anderson que demonstra de forma sintomática a transição pornô cinema/vídeo.

4 Revista Set - Especial Vídeo Eróticos. Ed. 52-E. São Paulo: Azul. p. 20. s.d.


Inclinações Sequiosas

Eric de Oliveira _ Letras/UnB

Jacó nasceu sem o dom da palavra, nunca sua boca proferira qualquer som que fizesse sentido preciso para qualquer pessoa. No entanto, a ausência de expressão verbal não atrapalhava muito a sua vida simples. Quando criança, se sentia fome chorava, se sentia frio também chorava, às vezes, até sorria de satisfação e assim seu rosto aprendeu a expressar muito mais do que meros sorrisos e queixumes. Tudo se figurava a face. Seus músculos faciais eram experientes em deixar claro seu consentimento ou desagrado, ou simplesmente seu desdém ou descaso. Não havia dúvidas, Jacó, falar não falava, mas ele sentia muito bem o mundo.

No seu universo de silêncio, ele era deixado de lado sem muita atenção e sem muita compaixão. Vivia o que lhe cabia. Muitos o tratavam como um tolo, outros o temiam por achar que ele observava demais e se calava somente para tornar os segredos mais apavorantes. "Um dia ele vai abrir a boca" - pensavam esses. Apesar de certas expectativas,

Jacó nunca falou, nem parecia se incomodar com isso. Ele vivia seu mundo em segredo, era a natureza que lhe entreva pelos olhos, nariz e ouvidos e que se estampava na sua face. Seu rosto era um grande mundo onde os olhos, como dois lagos, sempre brilhavam sem nada realmente querer dizer.

Vagabundo, moleirão, paspalho, o adjetivo variava dependendo de quem o proferia. Assim caminhava Jacó, carregando as qualidades que lhe atribuíam. A cidade era campo aberto para o seu nada fazer, ia e vinha ao sabor do bom e mau tempo. Seu lugar preferido era o pequeno rio que margeava a cidade. Às vezes permanecia horas somente olhando o rio correr. Seus olhos estavam sempre cheios, transbordando o mundo. Olhos vivos de enchente, inquietos que tudo consumiam: paisagens, pessoas, céus, estrelas e principalmente fatos. Era tosco e feio, mas tinha a graça daqueles cujos olhos são mais vivos que as manhãs de primavera.

A única pessoa que lhe dedicava uma certa afeição era uma


irmã moça de porte preocupado e tenso. Costumava-se comentar pela cidade: "moça muito séria esta irmã do mudo". Vivia para cuidar da família, especialmente do pobre irmão alienado de um ou mais sentidos - quem há de saber ? Ajudava a mãe com a limpeza da casa, com presteza e sem muito reclamar. A mãe vivia a repetir: "menina, você não vê que há muita coisa por fazer? Por isso, se apresse". Ajudava o pai com seu parco ordenado, que em um frio constrangimento quase nunca lhe dirigia a palavra e quando o fazia, eram sempre monossílabos perdidos na sala de estar. Não namorava, nem tinha pretendentes, poucos ousavam tentar romper ou escalar aquele muro construído de responsabilidades e obrigações para lhe soltar gracejos.

Porém quando a noite chegava, sozinha no seu quarto, visionava um mundo futuro, perfeito, via em devaneio o que lhe escapava aos olhos durante o dia, pensava apenas que tudo se modificaria, arranjaria alguém bom e compreensivo, que gostasse do mesmo tipo de vida simples e não se incomodasse com seu irmão, pois era a única pessoa que pensava ainda levar consigo. Por vezes chorava horas a fio, quando reprimindo o calor insuspeitado que lhe subia por todo o corpo, pensava em uma vida sem tanto sofri

mento, com a boca úmida, o coração palpitando, deixava as mãos percorrerem seu corpo sem, no entanto. ousar tocar realmente o local tão desejado. Os pensamentos corriam em confusão, neste momento, somente uma palavra lhe traria algum alento: seu nome. O que ela realmente gostaria de ouvir é seu próprio nome ser pronunciado de maneira calma e doce trazendo o conforto há muito buscado. No dia que se seguia, sentia um espaço vazio no corpo, como se algo lhe tivesse sido roubado, mas que, no entanto, nunca deixou de estar ali, no mesmo lugar. A tristeza não lhe transparecia, apesar de tudo, era desfigurada, e sempre a mesma máscara austera e impugnável tomava seu rosto de assalto.

Era verão. Certo dia, uma chuva muito forte varrera a praça da cidade, carregando todo tipo de caliça, destroços, a atenção e os pensamentos dos moradores da cidade. A violência da chuva mais encantava que assustava e todos pararam só para observar. Tão forte ela chegara, tão rápido ela partira, deixando um sol agradável e um céu lavado. Imediatamente Jacó correu para o riacho, que estava transbordando com a água trazida pela enxurrada. O riacho corria mais rápido do que de costume, levando consigo estranhos passageiros: galhos, insetos, e mesmo um


rato do mato que escorregara para dentro do rio. Jacó permaneceu na margem do riacho até quando a noite começou a querer mostrar seus múltiplos olhos. O céu, bastante inquieto, já preparava outra ducha para banhar também a noite e lhe aliviar do calor de verão.

Ao entrar em casa, sua irmã o esperava, sempre atenta e paciente. Disse-lhe que tomasse um banho, jantasse e fosse dormir. Assim fez Jacó, de maneira automática, recordando a água que corria rápida fazendo rodamoinhos, que logo se desfaziam e se refaziam. No leito, sua mente repleta de rios, chuvas e pequenas quedas d'água logo se afogou em sonhos velozes e fluidos, repletos de torvelinhos.

A chuva caía novamente. Batia suas gotas com violência na janela do quarto da infeliz irmã do mudo. Que ouvindo a chuva rasgando a noite, encolhida em seu medo, imaginava-a cortando os galhos de árvores, obrigando as plantas a se deitarem em reverência, chicoteando as mais impertinentes. Aplicando todo tipo de castigo. Submetendo o mundo a uma purificação forçada, lavando com rasgos de chuva as manchas, as nódoas e as culpas. Um absurdo constrangimento lhe tomava a alma. As gotas que continuavam a bater na janela, se espatifavam na tentativa de entrar e escorriam

sempre desfeitas pelo esforço. Ela se sentia sozinha e ameaçada, tão pequena quanto uma gota d'água que se atira contra uma janela. A água que banhava a noite e a essas alturas, também já se infiltrara no seu quarto, molhando as suas mãos que inutilmente tentavam conter a enxurrada.

Malgrado todos os esforços da chuva, ela não conseguira resfriar a cidade. O fato de a janela ter de permanecer fechada aumentava o abafamento. Deitada na cama, a irmã do mudo sentia todos os músculos se contraírem e se expandirem. A tristeza era insuportável. O calor era insuportável. E Jacó, na sua vida de alienação, será que também não sentia o mundo comprimindo sua existência? Para ele tudo parecia tão fácil, tão sem busca, tão sem sentido. Ela começou a imaginar Jacó, também acometido pela insônia, pela tristeza e pela dor. A preocupação ia se ampliando em grandes tentáculos úmidos e pegajosos que tudo envolviam e abraçavam. Ela precisava ocupar sua mente com a dor de outro. A angústia de imaginar o irmão passando pelo que ela passava só absorveu como uma esponja a sua própria dor.

Essas reflexões trovejavam em sua mente, invadiam seus devaneios e se apoderavam de todos os seus sentidos. Pela janela, via e ouvia desespero, tateava seu cor


po em desespero, engolia o desespero de suas lágrimas e cheirava desesperadamente a terra molhado, afogada pela chuva.

Seus dentes se serravam para conter o grito, já não podia mais. Levantou-se de um salto com a camisola fina colada ao corpo, lavada pelo suor e pelas intermináveis lágrimas, que nunca paravam de chover. Saiu de seu quarto e foi para o quarto de Jacó, que dormia profundamente.

Uma gratidão se apoderou do sua alma: Jacó dormia. Um rancor também lhe veio ao peito. Ele era feliz porque não sabia a infelicidade. A solidão se mostrava a ela, ameaçando-a e prendendo-a com as garras do abandono. O vazio era o seu tema, era seu espaço e terreno no qual ela tudo plantara. Agora onde colher, onde resgatar tamanha dedicação à falta de sentido? O calor já a sufocava, seu corpo estava febril e sua alma tremia. Restava-lhe se abandonar. Deixar levar-se pelo suor que escorria já atingindo as pernas, fazendo as cochas colarem uma na outra. Lembrou-se da menarca, um mal estar lhe percorreu o corpo. Seus cabelos se confundiam com a camisola, formando um único elemento empapado e viscoso.

Abandonar-se, era tudo. A cabeça vazia de pensamentos suavemente se deitou na cama, deixando os cabelos úmidos de suor

se espalharem pelo travesseiro como na superfície de um lago. Seu corpo tocando o de Jacó, fremia de ânsia e ela balbuciava: Jacó, diga o meu nome, diga o meu nome!

Jacó com os olhos semicerrados, nem dormindo nem desperto, ainda sentia as imagens da água do riacho correndo a toda com seus rodamoinhos. Seu corpo também suava de calor. Suas mãos logo buscaram nadar e domar aquele riacho vivo que, movimentando-se como uma enguia, lhe oferecia a boca úmida para ser sugada, provada e saboreada.

- Diga o meu nome! Insistia a boca crescendo em lago e logo depois em mar, dentado de inúmeras praias. Ele podia sentir o sal daquela pele, nadar naquelas ondas. Com os olhos ainda nublados, ele enxergava aqueles membros delgados que se debatiam e escorriam pelos lençóis. Pernas e braços que se balançavam como rios e riachos. O mar já estava longe.

Os cabelos que se espalhavam, desciam em corredeiras. - Diga meu nome! Os ouvidos de Jacó estavam empreguinados pelo constante baralho da água batendo nas pedras. - Diga meu nome! Os olhos de Jacó, grandes como dois pratos rasos boiando na corredeira, se perdiam em rodamoinhos e torvelinho, por vezes nadando, por vezes se afogan


do - Diga o meu nome! O rosto de Jacó exprimia surpresa, dor, satisfação, confusão, mudando todo o tempo, enquanto o riacho prosseguia seu caminho batendo nas arestas, lutando para correr desmargeado ao sabor da corredeira. - Diga meu nome, diga meu nome! Suas mãos nadavam, se agarravam as margens e se soltavam. Acabava por deixar-se levar. Os rodamoinhos se formavam e deformavam com uma velocidade cada vez mais alucinante. - Diga meu nome! Seu corpo seguia o curso d'água subindo e descendo rápido, rápido e mais rápido. Seus corpos brilhavam, molhados enquanto se dirigiam cada vez mais rápidos pelo caminho imposto pelas margens que se afunilavam e se espremiam. As águas se contraem, se adensam, transbordam na queda da corredeira. Batiam com mais violência e rapidez. - Diga o meu nome! Ambos com os rostos desfeitos, se misturavam com a água que corria, lavando pouco a pouco suas partes. O barulho da água quase perde sua unidade formando um único grande ruído. A queda é vertiginosa. Não há respiração, não há fôlego, o mundo é suspenso em queda, seus corpos vagam entre o céu e a água até mergulharem o mais profundo da queda. Logo, seus corpos estão a deriva, vagando calmamente na superfície.

Boiando em sensações, os olhos cheios d'água que espelham o céu descansam. A respiração se faz presente pouco a pouco. Os pensamentos são vigorosamente rechaçados. Como bêbados, seus corpos vão à deriva, distendidos após a queda. A água, porém, ainda que lentamente, corre. Como gravetos trazidos pela chuva, eles soçobravam na mansidão até novamente atingirem o curso da corredeira;

- Jacó, diga meu nome! Murmurava ela, chorando levemente. Repetindo sem cessar essa oração, essa súplica. Jacó perdido no riacho sentia em sua cabeça tudo novamente girar e correr vertiginosamente. Eram ambos a água inquieta que se mistura em movimentos, abrangendo muito além das margens e das paredes do quarto opaco, que sempre buscou os enclausurar em esquecimento.


Uma história verídica
que aconteceu comigo...

Régis Fernandes, 12/12/99

Agora estou sozinho sentado no balcão de um bar, tomando cerveja e lembrando os velhos tempos. O que vou relatar ocorreu quando eu tinha 15 anos, uma idade de muitos acontecimentos. Meu pai nunca me explicou nada, mas não é sobre ele que vou falar: é sobre o meu caralho. Desculpe-me se falo assim tão abertamente sobre a minha intimidade. É necessário.
Quando era jovem batia muita punheta, ás vezes até 6 por dia. Não podia ver mulheres gostosas na televisão ou andando na rua: ficava babando e corria para o banheiro com um monte de revistas de sacanagem. E lá passava a maior parte do dia.

Meu pai falava:

Moleque, pára com isso, você vai acabar rendido!

E eu não entendia o que ele queria dizer...

Em certa ocasião, eu estava tirando a roupa para tomar banho e fiquei prestando atenção no meu caralho, ele estava diferente. Não sei, ele parecia inchado. Na hora não dei muita atenção, esse foi o meu erro.

As semanas foram se passando e ele foi ficando maior. Após um mês, nasceu uma pele fina dos lados e, na glande, duas cavidades. A pele dos lados viraram braços e as duas cavidades transformaram-se em olhos. Logo em seguida, apareceu a boca.

Um dia, sentei na privada e comecei a cagar, o caralho ficou me observando e falou:

Você caga muito fedido!

Respondi que a bosta era minha e ele começou a rir da minha cara de espanto. Tinha aprendido a falar! No início eu achei estranho, mas depois ficamos conversando horas e horas, tornando-nos bons amigos.

Todos os dias eu acordava e ele estava lendo meu jornal, deixando-o todo bagunçado... Por esta época, já estava mais velho e morava sozinho, quer dizer, com meu caralho. Ele bagunçava não só o jornal, mas o quarto também.


No meu emprego ele falava o dia inteiro, algumas pessoas pensaram que eu estava ficando louco. Chegando em casa ele continuava a falar, dizia querer liberdade. Falava de uma vida digna, não agüentava mais ficar entrando em lugares escuros e apertados. Ou mesmo ser enforcado, nas noites solitárias.

Ele disse que estava cansado de viver na minha cueca suja. Parecia estar bêbado... Eu tentei explicar que ele era apenas um caralho, ele ficou nervoso e começou a me xingar: pegou uma faca e se desprendeu do meio das minhas pernas. Fiquei puto e mandei ele tomar no cu. Ele foi embora.

Depois de passar a raiva fiquei pensando, não devia ter falado com ele daquela maneira. Estava sem caralho, amigos e mulheres. Os anos se passaram e já tinha perdido as esperanças de encontrá-lo. Um dia estava jantando quando tocou a campainha, eu abri a porta e foi a maior surpresa: era o meu caralho, uma boceta e um cuzinho. Fiquei feliz, era uma família maravilhosa. Ele falou que agora freqüentava todas as rodas sociais e pretendia abrir um negócio...

Fragmento da HQ "O tagarela", de Paolo Baciliero


Conto deserótico n º 2

Lívia Maria Tiede
[História/UNICAMP]

Tinha uma cara comum. Na verdade não era uma mulher muito espetacular em nenhum aspecto. Olhos, boca, nariz, tudo muito simples, destas que a gente acha que vê todos os dias. Não sei por que me interessei por ela. Acho que sempre gostei das mulheres mais comuns... se pudesse, agora procuraria apenas as exóticas...

Eu a vi , pela primeira vez, (apesar dela ter garantido que já havia reparado em mim anteriormente) numa festa de um amigo. O amigo também não a conhecia e, nem sabia por intermédio de quem ela havia chegado até lá, obteve maior contato com ela quando nós começamos a namorar mas, mesmo assim não muito, pois eu me afastei de todos que conhecia para dedicar-me infinitamente ao amor daquela musa que me proporcionava tanto prazer.

Primeiro encontro, marcado, num bar comum, apenas como boas amigas, nada que pudesse dar indícios de que ela estava afim, ou eu, afinal eu nem sabia que ela gostava de mulheres, mas meu odor a atraiu, como ela mesma me costumava dizer.

Quando estávamos indo embora do bar comum, ela me puxou pelo braço e pediu que esperasse

mais um pouco. Tirou do bolso um pequenino pedaço de papel e anotou algumas palavras, depois me disse:

Eu anotei seu cheiro aqui, neste papel. Você tem gosto de quê?

Neste instante fiquei decepcionada. Porra, eu havia pensado que ela era pelo menos equilibrada... Depois reparei algo meio sexual naquela pergunta... Meu gosto? Meu gosto... Pensei numa fruta, é claro, afinal eu não queria que ela pensasse que eu tinha gosto de bife cru, como agora acredito que todos os corpos tenham.

Pêssego, eu acho...

Pêssego??? Que ótimo!!! Adoro pêssego...

E ela riu como criança, com uma doçura femininamente irresistível para uma mulher apaixonada como eu.

E você, tem gosto de quê???

Anis.

Anis, tem certeza, acho que você deve ter gosto mais comum...

Ela não se incomodou com o adjetivo "comum". Acho que ela nunca se importou com os nomes que as pessoas atribuem a tudo. Só se preocupa com os gostos , as cores, os cheiros , os sabores.


Talvez a profissão dela... Não, a personalidade dela...

De todo jeito , ela acabou dormindo em casa, quase todos os dias, desde então. Preparava-se toda perfumada, me esperando todas as noites. Sempre havia pêssegos me esperando e, eu ria quando os olhava... Eu sempre acabava comendo pelo menos um, antes de deliciar-me com o anis do corpo dela...

Na verdade, isso era no início. Pêssegos e perfumes sempre existiram, mas aos poucos eu não sentia mais o anis, apenas deixava com ela me experimentasse...

Eu nunca havia encontrado alguém que me satisfizesse tanto. Ela conseguia me provar, provar meu gosto de pêssego, de maneira diferente a cada explosão de prazer, a cada jorrada, que meu corpo transbordava num furor sem definição, e que fazia com que minha mente fosse capaz de atingir um branco iluminadamente completo... Eu, neste momento de êxtase, era apenas sentidos... os meus, e os dos lábios dela...

Este exercício de me entregar toda a seus paladares acabava com todas as minhas forças e, logo após eu dormia. Eu me incomodava com isso...

Sempre é você... Eu nunca...

Bebe de meu anis??? ( e ria, como aquela mulher ria...)

É...

Não tem problema, eu não me importo de você dormir... Gosto

de ver a estampa forte da sua carinha... Gosto de sentir você ...

Um dia perguntei para ela que cheiro ela havia anotado no papelzinho o dia que nos encontramos no bar. Ela não respondeu, apenas disse:

Você realmente é pês-sego...Deveria ter se experimentado antes...

Eu não entendi, mas como estávamos com pressa, achei melhor deixar isso para depois. Na verdade, até conhece-la, não me preocupava se eu tinha gosto, cheiro, essas bobagenzinhas... Numa quarta-feira, cheguei em casa mais cedo e, ela ainda não havia comprado pêssegos. Ela se desesperou, quis sair para comprá-los... Em minha ânsia pelos afagos dela , eu disse:
Esquece os pêssegos, vem aqui (a cobrindo-a de beijos) , eu já estou enjoada de comer pêssegos todos os dias...

Neste instante ela me afastou de si e, começou a chorar gravemente... Não pronunciou uma palavra... Eu tentei me desculpar, quando percebi que havia falado alguma coisa errada... Tentei confortá-la... Eu amava aquela mulher, seus carinhos, seus cuidados, não queria ofende-la, mesmo com suas manias, na verdade essas nunca me atrapalharam, até gostava, mas eu não sabia a importância que esses pêssegos tinham. Aliás não eram os pêssegos, era o


fato de eu ter um gosto, de eu ter falado logo no inicio que eu tinha um gosto, eu não havia apenas respondido "não sei". Eu tinha tomado uma atitude perante uma pergunta inusitada. Eu, definitivamente, tinha gosto de pêssego e, havia desmerecido isso... e conseqüentemente todo o valor do meu próprio gosto...

Lentamente ela parou de chorar e, enxugando as lágrimas foi-se enroscando em meus braços e, me aliviando do desconforto de tê-la desagradado. Beijos e carícias ... abraços... suores e corpos com o diferente aroma do próprio corpo...

Pensei nos pêssegos. Não seria melhor ir comprá-los??? Mas como eu já estava inteiramente entregue aquela mulher, fiz questão de esquecê-los.

Novamente eu começava a sentir o êxtase daquele momento místico em que ela possuía a parte mais sensível de meu corpo... Tudo... Recomeçava... Suave e forte... Maciamente, gostoso... todos os meus poros deliravam ao compasso daquela musica louca que ela tocava em mim... Todos...

Luz, luz, luz... Tudo começava a clarear. Em meio a suspiros , o branco atingia sua melhor expressão. Tudo era absolutamente nada, branco...Muito branco...

Uma quebra, e um vermelho inexplicavelmente doloroso me doía. Como doía, vermelho... muito vermelho, muita dor... Entre minhas pernas surgia a cara daquela mulher, vermelha e, sangue em sua boca. Eu desmaiei...

Meu sonho era branco e, lentamente o vermelho o invadiu. Numa tela rósea, minha amada corria e olhava para trás, rindo... Gosto de anis em minha boca. Como sorria aquela mulher... Gosto de anis em minha boca. Correndo, ela entrou num lilás bem mole e, ainda olhando para mim, alcançou o azul. Gosto de anis em minha boca. Neste momento, virou para frente, continuou correndo e tornou-se anis.

Acordei horas depois, eu acho. Estava frio, apesar da coberta sobre meu corpo, que doía muito. Eu ainda sentia o gosto estranho do anis em minha boca. Gritei por ela. Apenas silencio mudo. Tirei a coberta e lá estava, claro e forte o vermelho de minha dor, entre minhas pernas. Na ponta da cama havia um vidrinho e um papelzinho.

No vidro horroroso, estava o pedacinho que aquela mulher havia arrancado com os dentes de mim, embebido num líquido transparente. No papel uma mensagem:

" Agora você também é anis, para sempre."

Nunca mais a vi. Nunca mais comi pêssegos. E depois de muito tempo voltei a namorar, mas o gosto de anis nunca saiu da minha boca. E meu prazer nunca mais teve gosto de pêssego, nem de nada.

 


Comigo ninguém pode. Mariana Meloni.
Modelo: Fernanda Raquel. 1998.


Sodoma e Gomorra:
o primeiro relato

Wilian F. Pereira
Filosofia/UNICAMP

Os cinco primeiros livros da Bíblia formam um conjunto que os judeus denominam "Lei", ou Torá. O desejo de obter cópias manejáveis desse grande conjunto fez com que se dividisse seu texto em cinco rolos de tamanho quase igual. Daí provém o nome que lhe foi dado nos círculos de língua grega: he pentateuchos [biblos] ("o livro em cinco volumes"). Os livros são denominados Gênesis (porque começa pelas origens do mundo), Êxodo (porque começa com a saída do Egito), Levítico (porque contém a lei dos sacerdotes da tribo de Levi), Números (por causa dos recenseamentos dos cap. 1 _ 4) e Deuteronômio (ou "a segunda lei", retirada de um discurso de Moisés).

O Pentateuco recolhe o conjunto das prescrições que regulavam a vida moral, social e religiosa do povo. É fato marcante desta legislação o seu caráter religioso: em Israel, a lei é ditada por Deus, regula seus deveres para com Ele e motiva suas prescrições com considerações religiosas. Numa mesma coleção, misturam-se leis civis e penais e preceitos religiosos, e o conjunto é apresentado como a carta da aliança com Javé.

Uma vez que as leis são feitas para serem aplicadas, era preciso adaptá-las às condições variáveis de

cada ambiente e época. O Levítico (doravante, Lv) contém referências a elementos bem antigos, como as proibições alimentares (cap 1 - 11), as regras de pureza (cap. 13 _ 15), entre outros. Os caps. 17 _ 26 formam um conjunto chamado Lei de Santidade, que inicialmente era separado do Pentateuco. Essa lei reúne elementos diversos, alguns dos quais podem remontar até à época nômade, como o cap. 18.

Trataremos, assim, especificamente de Lv, 18, pois neste capítulo trata-se: i) das proibições das uniões entre consangüíneos, ii) dos limites da família e de iii) um bom número de outras proibições sexuais.

Para dar conta dos dois primeiros tópicos enumerados, estabelecem-se leis tais como "Nenhum de vós se aproximará de sua parenta próxima para descobrir sua nudez [= ter relações sexuais com ela]. Eu sou Iahweh" (versículo 6); e assim continua, proibindo-se "descobrir a nudez" do pai, da mãe, da irmã, irmão, tio, tia, genro, nora, neto, etc.

Em seguida, algumas proibições gerais: "Não te aproximarás de uma mulher, para descobrir sua nudez, durante a impureza das regras", "Não te deitarás com um homem como se deita com uma mulher. É uma abo


minação" e "Não te deitarás com animal algum; tornar-te-ias impuro. A mulher não se entregará a um animal para se ajuntar a ele. Isto é uma impureza" (Lv, 18, 19; 22; 23).

É bastante interessante notar-se que, como acontece quando se estuda um manual de civilidade, deve-se entender que historicamente ocorria justamente o contrário do que rezava a regra social, uma vez que não seria razoável desaconselhar a prática de algo inexistente. Incestos, sexo com animais, sacrifícios e outras práticas eram difundidas por toda a região. Contudo, Deus adverte seu povo: "Não seguireis os estatutos das nações que eu expulso diante de vós, pois elas praticaram todas essas coisas e, por isso, me aborreci delas" (Lv 20, 23).

Quando Javé envia a Sodoma e Gomorra os dois anjos encarregados de reduzir ambas as cidades a cinzas, para aplacar "tudo o que indica o grito que, contra eles, subiu" até Ele (Gn 18, 21), visa, contudo e antes, a dizimar o povo que praticava ações tão espúrias e contrárias a suas regras. Disfarçados de estrangeiros, os anjos chegam a Sodoma e são recebidos na casa de Ló e sua família, os únicos salvos da ira de Deus, seja por serem os únicos bons, seja por intercessão de Abraão. Antes mesmos que se deitassem - diz o relato - todos os homens de Sodoma, sem exceção, dos jovens aos mais idosos, cercaram a casa, "Chamaram Ló e lhe disseram: `Onde estão os homens que vieram para tua casa esta noite? Traze-os para que deles abusemos'" (Gn, 19,

5). O povo também não ouvia os apelos de Ló, que pedia: "Não, irmãos meus, rogo-vos, não pratiqueis um crime. Uma vez que este homem entrou em minha casa, não pratiqueis tal infâmia. Aqui está minha filha, que é virgem. Eu a entrego a vós. Abusai dela e fazei o que vos aprouver, mas não pratiqueis para com este homem uma tal infâmia" (Jz, 19, 23 _ 25). Todos os homens de Sodoma foram imediatamente cegados pelos anjos; Ló - o homem justo - e seus parentes foram retirados da cidade imediatamente, mas Sara, sua mulher, foi transformada numa pedra de sal ao voltar-se para assistir à destruição. "Quando o sol se erguia sobre a terra e Ló entrou em Segor [cidade vizinha onde refugiara-se com suas duas filhas], Javé fez chover, sobre Sodoma e Gomorra, enxofre e fogo vindos de Javé, e destruiu essas cidades e toda a Planície, com todos os habitantes da cidade e a vegetação do solo". (Gn, 19, 23-26)

A prática que posteriormente nomeada "sodomia" era abominável aos israelitas e punido com a morte, conforme atesta Lv, 20, 13: "O homem que se deita com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma abominação, deverão morrer, e o seu sangue cairá sobre eles". Resta saber se Sodoma foi destruída por esse ou também por esse pecado, tamanha a crueldade de seus habitantes.

De qualquer modo, eis a informação histórica.

Fonte: BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1985.


Manual de civilidade destinado às
meninas para uso nas escolas,
de Pierre Louÿs

Maria Cláudia Bonadio (História/UNICAMP) e
 Wilian Fernandes Pereira (Filosofia/UNICAMP)

Os manuais de "Boa conduta" ou "Boas Maneiras" se difudiram nas grandes sociedades de corte da Europa no final do século XVIII, popularizando-se entre os mais diversos segmentos sociais durante o século XIX.

Concebidos como guias fáceis de manusear e escritos de maneira bem simples, essas obras orientavam o leitor a entender e se adequar facilmente à "Ciência da Civilização", normatizando detalhes e ações da vida cotidiana. Esses manuais tornam acessível a todos os segredos da distinção social inerente aos modos e a etiqueta, explicando entre outras coisas como comer, beber ou falar em público.

Ainda hoje é possível encontrar nas livrarias uma diversidade enorme de obras que procuram orientar o convívio social, o cuidado com as aparências e a linguagem. Glória Kalil ficou meses na lista dos mais vendidos "ensinando" mulheres e homens a serem chiques! E Maria Alice do Soares Castro lançou recentemente um livro que detalha os segredos da "netquiteta".

O francês Pierre Louÿs (Gand, 1870 _ Paris, 1925), tornou-se célebre por seus poemas (Chansons de Bilitis, 1894) e um romance, Aphrodite (1896), impregnados de precisos traços de cultura grega e inspirados por um erotismo delicado. Seu culto à beleza plástica, tocada por certa melancolia, não se nega em suas obras seguintes, como, por exemplo, em La Femme et le Pantin (1898) e Les Aventures du roi Pausole (1901).

As informações levantadas não nos permitem afirmar se a este mesmo autor devemos atribuir o Manuel de civilité pour les


petites filles à l'usage des maisons d'éducation (sem data), ou a um homônimo, pois as fontes a que tivemos acesso são imprecisas e as edições, mal-cuidadas. O texto, contudo _ e isso pode-se afirmar seguramente não reproduz nenhuma sutil delicadeza característica ou algo do gênero. Pretende, bem ao contrário, utilizando-se de um humor e ironia que às vezes beiram o grotesco, oferecer instruções de bom-comportamento e etiqueta às moças bem-educadas da época de sua publicação. Seguindo o espírito dos manuais de civilidade, os assuntos são tratados por tópicos e ocasiões, de modo a cobrirem vários aspectos do que era socialmente recomendado.

Para a feminista Emmanuelle Deschamps (Libération, 28/10/98), por exemplo, o texto é de uma delicadeza depurada e refinada, além de incrivelmente pertinente e atual no que trata dos intensos desejos de um gozo obtido à custa de intermináveis preliminares.

Transcrevemos, abaixo, trechos da obra, a fim de impulsionar o leitor ao texto completo e original.

NO QUARTO

Não pendure consolo nos santinhos da cama. Esses instrumentos devem ser colocados sob o travesseiro.

EM CASA

Não vá à sacada para escarrar sobre os passantes, principalmente se você tiver porra na boca.

Não mije sobre o degrau mais alto da escada para fazer cascatas.

À MESA

Quando um adulto conta uma história licenciosa que as meninas não devem compreender, não se ponha a lançar gritos desarticulados como uma menina que goza, mesmo que a história a excite ao mais alto ponto.

Se econtrar um cabelo suspeito em sua sopa, não grite: "Chique, um pentelho do cu!"


JOGOS E RECREAÇÕES

Passar mel entre as coxas para fazer-se lamber por um cãozinho a rigor é permitido, mas é inútil retribuir-lhe da mesma forma.

Levantar as saias, sentar-se sobre um pino de boliche, fazê-lo entrar onde você sabe e fugir com ele mantendo-o apenas pela força do "quebra-nozes" é um exercício dos mais indecentes que uma menina bem educada não deve imitar, mesmo quando ela o viu fazerem com sucesso respeitável.

NA SALA DE AULA

Não desenhe no quadro-negro as partes sexuais da professora, sobretudo se ela mostrou-as a você confidencialmente.

Não diga que o Mar Vermelho é assim denominado porque tem a forma de uma boceta; nem que a Flórida é a pica da América; nem que a Jungfrau não merece mais seu nome desde que os alpinistas subiram nela. Estas seriam observações engenhosas, mas deslocadas na boca de uma criança.

Se disserem que o homem distingue-se dos símios pelo fato de não ter cauda, não proteste afirmando que ele tem uma.

NA IGREJA

Uma menina que desperta deve ter acabado plenamente de masturbar-se quando começa sua oração.

Se você foder à tarde numa igreja do campo, não lave o rabo na pia batismal. Longe de purificar o seu pecado, você o agravaria, bem ao contrário.

NA RUA

Dar dez centavos a um pobre porque ele não tem pão, está certo; entretanto, chupar-lhe o pinto porque ele não tem amante seria exagero: de maneira nenhuma se é obrigado a fazer isso.

Se perceber, na calçada, um garanhão violentamente arrebatado, não use a mão para aliviá-lo. Isso não faz parte dos costumes.

NO BAILE

Se você gozar enquanto valseia, diga-o bem baixo, não grite.

Uma menina bem educada não mija no piano.


DEVERES PARA COM SUA MÃE

Nunca chame sua mãe de "Vaca velha! Puta de mictório! Sapatão de merda! Bebedora de porra! Sífilis ambulante! etc." Essas são expressões que devem ser deixadas a uma pessoa vulgar.

DEVERES PARA COM DEUS

Agradeça a Ele por ter criado as cenouras para as meninas, as bananas para as mocinhas, as berinjelas para as jovens mães e as beterrabas para as senhoras maduras.

Algumas meninas muito vigiadas compram uma pequena virgem Maria em marfim polido e servem-se dela como de um consolo. É um costume condenado pela Igreja. Pode-se usar uma vela para este fim, desde que não seja benta.

FONTES:

Louÿs, P. Manual de Civilidade Destinado às Meninas Para Uso Nas Escolas. Col. Sátiros e Bacantes. [Trad. Plínio Augusto Coelho]. São Paulo: Imaginário.

Original francês: http://users.skynet.be/loufi/cul/cul14.html

Schwarcz, Lilia Moritz.Introdução. in:J.I. ROQUETTE, J. T.. Código do Bom -Tom, ou Regras de civilidade e de bem viver no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. pp. 7-32).

NÃO DIGA... DIGA...

*Não diga: "Minha boceta". Diga: "Meu coração".

*Não diga: "Estou com vontade de foder". Diga: "Estou nervosa".

*Não diga: "Ela goza como uma égua que mija". Diga: "É uma

exaltada".

*Não diga: "É a maior puta da Terra". Diga: "É a melhor menina do mundo".


O primeiro fetiche:
Pigmalião e Galatéia

"Pigmalião, um jovem e talentoso escultor oriundo de Chipre, era um homem que detestava as mulheres, `odiando os defeitos ilimitados com que a natureza as dotou' (Ovídio); assim, decidiu que jamais se casaria. Dizia para si mesmo que sua arte lhe bastava. Não obstante, a estátua à qual dedicara toda a força do seu gênio representava uma mulher. Ou não conseguia cultivar em espírito o mesmo desprezo que, em sua conduta, dedicava ao sexo feminino, ou então pretendia esculpir uma mulher que, de tão perfeita, pudesse mostrar aos homens os defeitos das mulheres com que estavam acostumados a conviver.

Seja como for, trabalhou com grande afinco e dedicação durante muito tempo, e o resultado foi uma obra de arte do mais extremo requinte. Contudo, por mais bela que fosse a estátua, Pigmalião não se dava por satisfeito. Não cessava de aperfeiçoá-la, e a cada dia, ao toque de seus dedos habilidosos, a figura tornava-se mais bela. Não havia mulher ou estátua que se lhe pudesse comparar. Quando já não havia mais o que acrescentar a tanta perfeição, algo de muito estranho aconteceu com o criador: apaixonou-se perdidamente por sua criação. É preciso que se diga, a título de esclarecimento, que a estátua não parecia uma estátua; diante dela, ninguém afirmava tratar-se de marfim ou mármore, mas de carne hu

mana, inerte apenas por alguns momentos. Tal era o assombroso poder desse jovem altivo e arrogante _ havia alcançado a suprema realização artística, a arte de ocultar a arte.

A partir daí, porém, o sexo que ele via com tanto desprezo teve sua vingança. Pigmalião tornou-se mais desesperadamente infeliz do que o mais desgraçado dos amantes alguma vez rejeitado por uma mulher. Beijava aqueles lábios tentadores, mas os seus beijos não eram corres-pondidos; acariciava o rosto e as mãos da estátua, mas ela continuava inerte; tomava-a nos braços, mas ela continuava sendo uma forma fria e impassível. Durante algum tempo, tentou fingir como fingem as crianças com seus brinquedos: enfeitava-a com trajes suntuosos, experimentando sucessivamente os efeitos de cores suaves ou muito vivas, e imaginando que assim ela ficaria satisfeita. Trazia-lhe todos os presentes que as jovens de carne e osso tanto apreciam: pequenos pássaros, flores alegres e as brilhantes lágrimas de âmbar que choram as irmãs de Faetonte, sonhando que por essas coisas ela lhe agradeceria com fervoroso afeto. À noite, punha-a para dormir em um leito macio e aconchegante, exatamente como as meninas fazem com suas bonecas. Pigmalião, porém, não era nenhuma criança, e seria impossível continuar com todo esse fingimento. Acabou desistindo,


pois amava uma coisa sem vida que o estava levando a um desespero profundo e irremediável.

Uma paixão tão excepcional assim não podia continuar por muito mais tempo ignorada pela Deusa do Amor. Vênus encheu-se de interesse por algo com que raramente se deparava, uma nova forma de apaixonado, e resolveu ajudar o jovem que conseguia apaixonar-se com tanta originalidade.

A festa dedicada a Vênus era especialmente celebrada em Chipre, a primeira ilha a receber a deusa depois de ela ter nascido da espuma do mar. Eram-lhe oferecidas novilhas brancas com os chifres dourados; o perfume celestial do incenso espalhava-se por toda a ilha, proveniente de seus inúmeros altares; as multidões se comprimiam nos templos, e todos os amantes infelizes compadeciam com suas dádivas, orando para que o seu amor passasse a ser correspondido. Pigmalião, que ali também se encontrava, ousou pedir à deusa que lhe permitisse encontrar uma jovem igual a sua estátua. Mas Vênus sabia muito bem o que ele realmente queria, e, como sinal de que sua prece seria atendida, fez que a chama do altar diante do qual ele se encontrava se elevasse três vezes no

(c) Steele Savage, 1942.

 

ar.

Incapaz de tirar da cabeça este bom presságio, Pigmalião voltou para casa e para o seu amor, aquela coisa que tinha criado e à qual entregara o seu coração. Ali estava ela em seu pedestal, gloriosamente bela. Acariciou-a, e assustou-se. Seria um engano dos seus sentidos, ou ele de fato a sentira quente ao seu toque? Beijou seus lábios em um lento e prolongado beijo, e sentiu-os irem suavizando-se sob seus próprios lábios. Tocou-lhe os braços e os ombros, e sentiu que a rigidez anterior não mais existia. Era como se uma estátua de cera estivesse amolecendo ao contato com o Sol. Apertou-lhe o pulso e percebeu que o sangue ali pulsava. Lembrou-se imediatamente de Vênus; tratava-se, sem dúvida, de obra da deusa. E, com gratidão e alegria indizíveis, envolveu-a em seus braços, vendo-a sorrir e corar enquanto olhava para ele.

A própria Vênus honrou-lhes o casamento com sua presença, mas nada sabemos do que se passou a seguir, a não ser que Pigmalião deu à jovem o nome de Galatéia e chamou o filho de ambos de Pafo, nome que mais tarde passou a designar a cidade favorita de Vênus."

FONTE: HAMILTON, Edith. Mitologia. [Trad.: Jefferson Luis Camargo. Ilustr.: Steele Savage]. São Paulo: Martins Fontes, 1992. pp. 150 _155.


Leandro Vieira.


Mulher com a pupila dilatada.
Criação e desenho: Christian Paiva.
Arte final: Loni Viegas
Caneta s/ papel. 1999.


Bondage. Mariana Meloni.
 Modelo: Fernanda Raquel. 1998.


Perdida no quarto escuro. Mariana Meloni.
Modelo: Fernanda Raquel. 1998.


Sem título. Paulo Bocca. Pastel. 1998.


DE OLHOS ABERTOS
(considerações sobre o Filme/Vídeo Pornô e ZAZEL, um filme do gênero)

Luciano Felipe dos Santos
História/UNICAMP

Hoje a palavra (escrita e falada) é provavelmente o meio mais utilizado pelos homens para se comunicarem, seguindo-se a imagem e o som como meios secundários, apesar de bem desenvolvidos. O homem ocidental foi, ao longo do tempo, desdenhando do valor de seu corpo e de sua capacidade de comunicação, expressão de idéias e sentimentos. Vivemos, atualmente, o paradoxo do culto plástico-estético do corpo desvalorizando sua capacidade de comunicação natural. Creio que o processo de racionalização das relações humanas, no sentido lockeano do termo, trouxe homens mais "sérios" (diria "frios") comprometidos com a intocabilidade de sua primeira propriedade, o corpo, decorrendo daí definições pré-estabelecidas dos limites de exploração de nossas relações, olhares, palavras, e sobretudo de nossas expressões corporais. A vida pública necessita deste decoro para caminhar.

No entanto o (falso?) moralismo humano interveio também em nossas relações privadas, nossos limites individuais e com as pessoas mais próximas, que, além de presenteadas com uma flor, uma palavra carinhosa, um sorriso meio tímido-sensual, poderiam desfrutar dos segredos mais íntimos de nosso corpo, do trabalho das mãos, dos lábios, dos braços, pernas, pés, suor... Tal moralismo, por uma imposição da ditadura moderna do "não se pode tocar", nos impede de conhecer até mesmo os corpos mais próximos, quando não o nosso próprio corpo, impedindo-nos de descobrir _ sem medo de ver, sentir _ ou admitir o desejo da carne (que é corpo, olhar, palavra). Mas, além de impedir-nos de admitir o nosso desejo, bloqueia-nos também a admissão do desejo dos outros.
Apesar dessas considerações, imagino que somos, no mínimo, seres de mente pornográfica, mas não a admitimos. Refletindo-se sobre isso é visível que, para quase todas as pessoas que conhecemos, pornográficos são os outros; o que fazemos, nossa explosão de gozo individual, é erotismo, apenas isso, como se o limite (se há) entre o pornográfico e o erótico fosse de fácil percepção. O problema é que o juízo de valor, ditado pelo senso comum (gigantescamente imerso no contexto repressivo descrito acima), estabeleceu uma delimitação clara entre estes termos enaltecendo o segundo, concedendo apenas a ele a capacidade de ser belo, criativo, sensual. Isto é um 

engano pois essas qualidades podem ser percebidas nas duas formas, se é que elas existem separadamente ou em oposição.

Por uma reflexão sobre o toque no corpo, a liberdade de falar sobre ele, de olhá-lo sem medo, de desejar, de admitir nossas "sujeiras", fantasias, sonhos, imaginação, libido, foi sobretudo nesse sentido que escolhi falar, neste número de O Boi, sobre um tema tão estigmatizado quanto o filme pornográfico, lugar, por excelência, da exposição, da admissão e explicitação das vontades mais plurais (nem tudo o que se mostra nos filmes é desejo ou fantasia de quem vê, ou sequer é belo), pessoais e obscuras.

Da estigmatização que existe ao redor do filme/vídeo pornô surge a dificuldade de se falar dele, e, por que não, da pornografia como um todo. A primeira pergunta que me fiz, portanto, foi no sentido de compreender o porquê disso (sobretudo se o diálogo sobre o pornô se dá entre sexos opostos). O que fica evidente, creio, é o grande medo de nos vermos e de falarmos sobre nós mesmos, de nosso quarto escuro (ou claro), ou mesmo de admitir que somos "frios", modernos demais, racionais demais, a ponto de oprimir nosso instinto. Para muitos a pornografia, entendida no sentido da explicitação, é feia, o sexo (genitália e fenômeno instintivo de satisfação humana) é feio. No entanto, o close genital (cena vital para uma obra pornográfica) não é nada mais que o nosso olhar sobre algo que nós somos, pois além de sermos pessoas que constróem cidades, textos, religiões, bombas atômicas, somos sensualidade, sexualidade, libido. O gozo para a câmara (outra cena vital do pornô) é não mais que a consumação do prazer (no caso masculino) explicitado, e os sons femininos, os gemidos (parte visceral da obra pornográfica, que não é apenas a imagem) pode ser visto como a consumação (para os ouvidos?) do prazer feminino.

Quero, no entanto, falar sobre um vídeo em especial, ZAZEL: a essência do amor (Philip Mond, 1997) sintetização, a meu ver, de grande parte do que de interessante já se produziu até hoje na indústria do obsceno. Contudo, sintetiza para ir além do que se pensa ser uma obra pornográfica. O filme é palavra, trilha sonora, cenário, figurinos (em certas cenas utiliza inclusive recursos como body art), fotografia, cores, e sobretudo beleza, articulados da forma mais sensual, erótica, e pornográfica por mim já apreciada em algo do gênero.

Zazel, mulher que procura uma essência, nas flores, para o perfume que pretende fazer, recebe um telefonema de Rod Rigolaveria, da "Fragrâncias Nuance", decorrendo daí toda narrativa. Inicia-se a busca de Zazel no intuito de encontrar tal essência que se transformará, segundo eles, na mais excitante fragrância já feita, e chamar-se-á Zazel: a essência do amor.

Neste momento a forma em que a narrativa se desenvolve está em suspense. O clima é de expectativa, colocando-nos sob tensão e deleite à espera do que irá acontecer. Começamos, desta forma, a prestar atenção no 

cenário, nos sons dos pássaros, dos grilos, das árvores, no momento em que Shiva, a deusa da criação, aparece, vinda da água, e inicia um jogo sedutor com outra deusa, ambas com figurinos simplesmente belos e "surreais", sentimos todo o ambiente voltado para aquele jogo e nos damos conta de que aquele lugar poderia muito bem ser o jardim dos desejos/prazeres.

Com isto inicia-se o filme, e a busca de Zazel pela fragrância mais excitante nas flores, e nas pessoas, deste jardim. Dentro desta busca, e no filme isto parece algo onírico _ aos moldes de Peter Greenaway em A última tempestade _ aparece uma voz suspensa, sem definição de origem (vinda de um sonho?), que começa a se questionar (e afirmar):

A essência do prazer, qual é? Qual poderia ser?

Onde pode ser encontrada?

No Céu? Na Terra?

A antigüidade é revivida nas lendas do amor?
É a orquídea selvagem no doce cheiro do paraíso?

É a espada do cavaleiro no suor de sua vítima?

Ou só é encontrada nos pesadelos mais demoníacos?
Não pode ser artificial. Deve vir da natureza.
Natural, sensual... amor.

O filme desenvolve-se, portanto, a partir destes questionamentos e, à medida que a procura avança, a vontade e a descoberta de novos sentimentos despertam a necessidade de criar mais, fantasiar, e saciar os desejos. Partindo disso, carinho, dor, paixão, violência e morte são tratados de tal forma, nas cenas seguintes, que os closes, os orgasmos, a "sujeira", a devassidão pura, e muitos outros estigmas do pornô não conseguem ser percebidos desta maneira, nem mesmo, creio, pelo público que normalmente o estigmatiza, inclusive o feminino. Não há lugar, então, para a culpa se procuramos saciar o desejo de forma sincera, se somos sinceros para com ele. Talvez esta seja a questão e discussão principal que não percebemos acerca do gênero pornográfico. Critica-se bastante o gênero por freqüentemente não ter "história", plausibilidade, esquecendo-se de que o que se "discute" numa obra de tal teor é justamente o sexo, ou seja, a "história", a realidade, está na sexualidade. A questão, como um todo, está expressa com bastante clareza neste filme mas em muitos outros é carente de expressão, pois, como em qualquer outro gênero, há também um considerável número de obras de qualidade discutível. Isto, de resto, também é normalmente esquecido por grande parte das pessoas que fecham os olhos, por qualquer motivo que seja, a este tipo de obra.

Falar apenas da primeira cena de sexo de ZAZEL basta para dar uma idéia do que vem a ser o filme. O desejo que ela (no sentido mais ambíguo 

possível) desperta, e sua "lição" de paciência e sedução são o bastante para nos fazer (re)refletir sobre o que vem a ser nosso erotismo (pornografia?), ou mesmo o filme/vídeo pornô, suas perguntas, ações e possibilidades.

As palavras de Nuno Cezar Abreu, em sua obra O Olhar Pornô: a representação do obsceno no cinema e no vídeo, sobre algumas críticas que normalmente se faz à razão do pornô, nos são oportunas. Segundo o autor:

"o que o filme pornográfico (e a pornografia) faz é `estabelecer uma cunha entre a existência de uma pessoa enquanto ser humano completo e sua existência como entidade sexual, enquanto na vida comum uma pessoa "saudável" é aquela que impede que tal lacuna se amplie' (citado de Sontag, p.62). Essa suspensão da realidade, pelo prazer da transgressão, proporciona um diálogo entre duas fantasias: a contida no pornô e a do espectador-voyeur que, momentaneamente desumanizado, se completa no imaginário. A fantasia - entendida como o território do obsceno - é construída pelo filme, que oferece como conteúdo essencial de sua mercadoria a explicitação de atos sexuais, e também pelo espectador, um corpo portador de um (in)consciente, onde estão as suas próprias fantasias e, nelas, o prazer que pretende retirar da experiência de sua fruição. (Abreu, p.126)

Não creio que devamos separar o "ser humano completo" de sua "existência sexual". Ao contrário, perceber que somos feitos de mente e corpo, formando uma homogeneidade inseparável, que "ambos" são meios de comunicação e expressão do que sentimos, é, a meu ver, condição essencial para nos vermos, e não termos problemas com isso, como entidades muito mais amplas que nossas idéias, ou seja, seres humanos completos com racionalidade e instintos entrelaçados, necessitando ao mesmo tempo de realidade e fantasia, aqui também entendida como uma das faces do real.


o boi entrevista

Luis B. L. Orlandi

Entrevista concedida com exclusividade a `o boi' em 12/04/00. Participaram da entrevista membros do conselho editorial e Adriana Leandro, convidada especial.

o boi: Quando fazíamos o plano para esta entrevista, uma das maiores dificuldades foi recolher das pessoas algumas perguntas sobre sexo que eles gostariam de fazer a um filósofo. Elas simplesmente não sabiam o que responder. Por que as pessoas hesitam em, quando se deparam com um filósofo, lhe perguntarem qualquer coisa sobre o tema?

Orlandi: Vejamos primeiro o seguinte: não sou filósofo; sou mero professor de filosofia. Ora, vida de professor, como a minha, pelo menos, é monótona. Então, o pessoal tem razão; a dificuldade aí está: como perguntar a uma vida monótona sobre temas tão quentes? Que é que um professor pode entender disso? Eu, pelo menos, fico como que perplexo, porque minha experiência pessoal pouquíssimo me autoriza a dizer algo a respeito disso, dada minha pobreza nesse campo. Isso parece justificar um pouco a dificuldade das pessoas em levarem adiante perguntas desse tipo. Não que eles não tenham uma idéia do que perguntar, mas porque aí já intervém algo como uma pré-apreensão da monotonia dessa vidinha de professor.

o boi: Um dos argumentos levantados é o de que o filósofo estaria acima disso tudo, do sexo, que ele estaria preocupado com idéias maiores, etc. Mas isso tudo parece meio hipócrita, não?

Orlandi: Não só hipócrita. Aí a gente é obrigado a lembrar o seguinte: os caras se reuniam em certos banquetes antigamente pra conversar sobre coisas, e uma delas era justamente `Eros'. O tema do amor é o tema do Banquete... mas evitemos apelar pra erudição, como combinamos. O fato é que filósofos conversam e escrevem a propósito de mil e uma coisas. Então não é porque o filósofo estaria viajando em idéias que ele não teria algo a dizer a respeito do erotismo, do amor etc. O dificultoso é obter de professor de filosofia uma reflexão que implique a experiência dele, porque essa experiência parece-lhe sempre acanhada. Ele deambula, geralmente, entre seus estudos e as salas de aula, em contato permanente com novas gerações de estudantes, é verdade, mas em contatos limitados por dispositivos que especializam seus encontros como assessoria funcional nas linhas de criação e distribuição de saberes.

o boi: O senhor então distingue filósofo e professor de filosofia, no caso...

Orlandi: Ah, sim, porque ser filósofo é um bicho mais complicado, esse bicho estranho capaz de criar tantos e tão fortes conceitos, mas o professor, coitado, é um arrumador de textos, um dedicado trabalhador do inter-textos, abismado entre um excedente de idéias e a impossibilidade de, em poucos anos, levar a si próprio e aos seus alunos à apreensão de um tesouro inesgotável. A melhor das coisas que ele pode fazer é dar uma boa aula, arrumar bem os textos, transmitir com mais ou menos competência... é suscitar, enfim, a leitura da idéia surpreendente.

o boi: E o filósofo criador dos conceitos, o senhor acha que tiveram uma vida sexual, digamos, ativa?

Orlandi: Olha, isso é difícil de saber, mesmo porque podemos, com humor e ironia, pensar que o ser ativo é distintamente pensado em cada galáxia conceitual.

o boi: ...mas pensavam muito nisso mesmo assim...

Orlandi: É possível. De qualquer modo, eles foram sempre obrigados a metamorfosear coisas em conceitos, sem o que não há filosofia. Transforma-se em conceito seja uma experiência, seja esse encontro da sua experiência com os textos que os outros filósofos foram estocando nessa história do pensamento. O que a gente pode evitar, aqui e agora, é uma dupla tentação: a de dizer a experiência erótica de um professor e a de reproduzir o que este ou aquele filósofo escreveu a respeito do tema. Positivamente, o que podemos fazer aqui e agora é encaminhar a seguinte pergunta: que aventura discursiva poderia ser armada hoje em torno desse tema? O que é que a gente, por conta própria, pensaria a esse respeito, sem a pretensão de ser professor dando aula ou de arvorar-se em filósofo criador de conceitos. O que nós aqui poderíamos pensar, explicitar, falar em torno desse tema.

o boi: Que relação, então, você pode traçar entre erotismo e cultura?

Orlandi: Primeiramente, fico indeciso, porque a pergunta deixa em silêncio um termo que, no meu tempo de estudante, andava emparelhado com o de cultura, o termo natureza. Na minha cabeça sua pergunta fica brincando num triângulo composto de natureza, erotismo e cultura. O que eu gostaria de salientar é o seguinte: se você pensa o erotismo do ponto de vista da sua complicada inserção na experiência real, é possível notar que ele implica naturezas mas não se esgota como coisa estritamente natural, pois ele se mostra fortemente como artifício, sendo, nesse sentido, cultura investindo a natureza. Ele potencializa a experiência sexual como complicada imbricação entre o natural e o artificial. Mas isso também quer dizer que pode haver erotismo em todas as espécies. Nesse sentido, a cultura já estaria espalhada por todas as espécies ditas naturais; não haveria, assim, um rompimento ou uma diferença de natureza entre a natureza e a cultura, mas os mais variados tipos de intersecções entre dados e transgressão de dados. Ora, o erotismo parece ser uma boa caixa de cruzamento dessas duas coisas. Ele é uma experiência de transgressão de dados, de liberação de constâncias, de extrapolação de pesadumes, de rompimento de monotonias. Mas observe: os dados, as constâncias, os pesadumes e as monotonias podem estar tanto do lado dito natural quanto do lado dito cultural ou artificial. A experiência erótica passa a merecer esse nome apenas quando ela funciona como diagonal, como fio dessa transgressão, dessa liberação, dessa extrapolação, desse rompimento, esteja o paradume acantonado num corpo dito natural ou numa técnica sexual dita cultural ou artificial. Isso explica porque as mais avançadas tecnologias sexuais podem perder sua potência erotizante. Para subsistir, o erotismo implica uma constante transmutatividade, o que ocorre sempre que fluem surpresas entre os dados, agora tomados por fluxos de superação recíproca. Eu quero dizer o seguinte: se o sujeito se constitui por ultrapassar o dado, o sujeito do erotismo é esse imerso ultrapassando a sua própria imersão em fluxos de superação. Ele não é o repetidor. Por isso, não é mera sexualidade reprodutora, fixada na reprodução. Aliás, duvida-se até mesmo que as chamadas espécies animais estejam fixadas numa naturalidade. A sexualidade garante a reprodução e esta parece repetir-se como monotonia, mas acabam descobrindo variações, surpresas... que denotam que o animal não está preso, fixado sua ordem fechada. Então, deve também haver jogos de superação entre os bichos, emergindo sujeitos animais numa sexualidade irrompendo como experimentação erótica. Por que não? Afinal, pesquisas atuais têm mostrado que a nossa distinção em relação ao animal é precária, pelo menos precária. O erotismo, como fio de metamorfose sexual, não pode ser monopólio de humanos; ao contrário, estes parecem ter acesso à experiência erótica apenas quando, na interseção do natural e do artificial, intensificam-se em fluxos de superação recíproca; quando entram num jogo sem a garantia, portanto, do transcendente que imaginam ser.

Em resumo: o que devemos fazer a respeito desse cruzamento do dado "natural", do dado artificial ou "cultural" e do erotismo é, pelo menos, de um lado, evitar fixar a nossa distinção abrupta em relação à animalidade, e, por outro lado, não manter essas categorias sem porosidades umas em relação às outras; é, portanto evitar ter do erotismo uma noção estanque. Ele flui como fio de transgressão mútua ocorrendo entre dados jamais estanques, cruzamento potencializador de naturezas e culturas. Nesse enrolamento, nessa dobradura do artificial e do dado, nesse jogo, o erotismo é exemplar por fazer entre você e o animal não uma comunidade ou uma igualdade, mas um coletivo de variações intensivas. É isso que o erotismo nos ensina enquanto variação: ele é a grande experiência desse tipo de variação. Porque se alguma coisa nos une ao resto do universo, é o intensivo. E com isso a gente não pára no animal, a gente vai para todos os agrupamentos de intensidade do universo, sendo pensável até mesmo um erotismo entre as galáxias.

As técnicas ditas eróticas podem ou não funcionar para a ativação do erotismo assim compreendido, dependendo do seu poder circunstancial de ativar ou não a experimentação das intensidades. É claro que essa experimentação pode degradar-se a qualquer instante em violência e morte, em isolamento, em abismo mortal. Por isso, impõe-se, parece-me, uma ética da experimentação prudente das intensidades. Não estou postulando a necessidade da virtude do meio termo, mas uma experimentação que trabalhe a superação de limites sem levá-la ao limiar de sua própria negação, ali onde a morte vive à espreita do jogo da ingênua entrega de si aos fluxos intensivos. Acho que o erotismo pode desdobrar-se no campo da experiência real sem necessariamente degradar-se como cúmplice do conjunto dos intoleráveis que já nos acabrunham. Você pode muito bem compor-se com os outros em meio a intensidades sutis que não o destruam.

o boi: É um erotismo quase que medicinal...

Orlandi: O erotismo como chave de abertura de mundos possíveis, que é a caracterização que melhor se encontra dos outros, seja de animais, seja de gente, seja lá o que for. Vou dar um exemplo sem pensar em erudição: é o exemplo do Sexta-feira ou os limbos do Pacífico do Michel Tournier. Então você vê o avanço do erotismo, gradativo, quebrando a maneira cartesiana que o Robinson tem de inicialmente organizar o mundo; e ele é tomado aos poucos, não só pelo Sexta-feira, pela atração diária pelos mundos, mas já no vegetal: o vegetal está abrindo uma sensualidade que ele não esperava.

o boi: E a pornografia, Orlandi, como você vê essa indústria pornográfica, esse mercado...?

Orlandi: Veja bem, isso é importante: não se trata de falar mal de filme pornográfico, mesmo porque às vezes é uma delícia, tem ótimos filmes pornográficos e desvendam técnicas com as quais você aprende coisas. Há uma ambigüidade nisso. Veja, por exemplo, um filme como O império dos sentidos: ele vai e não vai pra pornografia, e atinge um erotismo até avassalador, chegando a flertar muito com thânathos, com a morte e tal, mas por quê? Porque o ápice da intensidade pode chegar muito perto da morte: o ápice da intensidade na droga vai perto da morte... são derrocadas que podem se abrir em toda e qualquer experiência que implique uma experimentação do intensivo. Isso é verdade. Ora, o que a pornografia sem arte geralmente faz é disciplinar e rebater excessivamente em peças sexuais do organismo anátomo-fisiológico a variada riqueza de fluxos intensivos.

o boi:... como o close genital, por exemplo...

Orlandi: Isso, os closes etc. Então, fica-se escravo do corpo orgânico, quando o erotismo, na verdade, explorando o intensivo, vai para além desse corpo. Esta é uma grande questão, tematizada por Deleuze e Guattari, por exemplo. Eu tenho pena às vezes do olho preso a essa abordagem rasa, meramente física.

o boi: É que o erotismo desperta coisas das quais você não se apercebia?

Orlandi: Isso mesmo. Ele desvela, ele desvenda... e outra: o erotismo não é necessariamente rebatimento do desejo na sexualidade punctual, orgânica. Ele é um campo de exploração que passa por aí também e que implica sensualidades as mais líricas, por vezes. Mas aí você precisa ler o erotismo na sua capacidade de ser essa experimentação, que vai da sutileza até violências problemáticas, seja no sadismo, seja no masoquismo... até experimentações líricas de uma palavra com a outra num poema etc. Isso se espalha como sensualidade e torna inevitáveis as aspirações por novas sensibilidades, como se tudo isso concorresse para melhorar a pele do mundo. Quando Sebastião Salgado fotografa, por exemplo, é sua sensibilidade que está trabalhando por uma nova pele do mundo, um mundo liberto dos horrores que ele denuncia com arte.

Mas aí você fala: "espera aí, você está confundindo dois conceitos, tem toda uma sensualidade e tal...". Olha, eu vou dar um exemplo: tem um filme, entre erótico e pornô (porque inclusive tem certos pontos de pornografia e tem ero

tismo), que é o Afrodite, qualquer dia vocês peguem na locadora...

o boi: Qual é o diretor?

Orlandi: Bem, perdi o diretor. Depois você descobre e fala que eu falei. (risos) De qualquer modo, Afrodite; este filme, o que é que ele faz? Ele inclusive mostra que o erotismo pode muito bem não se dar bem com certo tipo de música, quando se trata de cuidar de uma atmosfera.

o boi: É bem aquela coisa do Kama Sutra, né...?! naquela versão indiana...

Orlandi: Talvez. É às vezes numa música suavemente tocada e o andar pousado, quase em câmera lenta, que se arma a atmosfera erotizante entre duas pessoas, e não de mera manipulação sexual, mas de contato suave da mão com a pele da outra. É absolutamente lírico! E o olhar do dono do barco esperto porque a sexualidade se dá ao longo de leituras _ que olha através de um desses espelhos em que de um lado se vê o outro, mas do outro só se vê o próprio reflexo; e ele fica vendo a garota, muito bonita, se trocando e, ela mesma, sem exibicionismo nem mesmo à câmera, passando creme em si. Veja bem: não tem sexo, não é absolutamente erótico no sentido mercado-pornô. E assim por diante.

o boi: E você acredita numa pornografia como ideologia, ou usada para esse fim de controle, ou escravidão, alguma coisa assim?

Orlandi: Veja... aí é também ambíguo, porque existe manipulação em tudo quanto é canto, e você pode também manipular o lírico, o trágico, o épico, seja lá o que for. Então, daqui a pouco, se você for um cara esperto de media, pode pegar uma cena com um pianinho de leve para fazer jogos de venda e compra... Você vende e compra qualquer coisa, o capitalismo é capaz disso. O filme não é intrinsecamente mau; quando você quer espiar o órgão sexual, você vai ao filme pornô, e às vezes para descobrir técnicas que você não conhece, como eu já disse, ou para entrar em contato mental com essas técnicas. É essa listagem técnica.

Agora, parece-me que o problema prático está no seguinte: como levar seja lá o que for a uma experimentação propícia à liberação da vida das relações que a degradam? Em vários momentos, um filme pornô de baixa arte, só em oportunidades muito raras pode suscitar aquilo que é mais constante no erotismo trabalhado como a intersecção de... de mundos, porque no fundo é isso. O desejo está em toda parte; o erotismo não precisa rebater isso imediatamente no sexo. Quando ele faz isso, ele cai imediatamente numa pornografia que dificulta novos tipos de aliança com o que vejo.

Que experiência teve uma pessoa quando, ainda criança, certas mães ou tias lhe deram banho e ela se excitou? O que é aquilo? Percebe? Era sexo? Talvez, mas erotismo ou sensualidade parece-me um nome melhor para dizer essa passagem do desejo... Aí você pode perguntar: "bom, mas eros era função do prazer, o prazer é mais imediatamente rebatido no sexo..." Gozar é uma espécie de função: você vem aqui, trepa, goza e pronto: tchau, até logo etc. e tal. Mas quando Freud tematiza um Para além do princípio do prazer, ele estava exigindo algo mais do nosso poder de pensar a experiência real das pessoas. Mesmo que evitemos pensar esse "para além" como instinto de morte, certamente algo irredutível ao jogo do prazer pode estar ocorrendo em certas experiências, um mundo de pulsações intensivas que acabam ativando o erotismo para além dos seus rebatimentos pornográficos. Graças ao intensivo, o erotismo é uma sexualidade que se mantém virtual sem a pressa da pornografia, sem a pressa de atualizar-se na anátomo-fisiologia sexual. Há grandes obras de arte capazes de explorar esse campo. Basta reler O amante de Lady Chatterley, de David Herbert Lawrence, justamente um dos pensadores que mais lutaram no século XX para que eros funcionasse em prol de um brilho e não pela traição da vida.

Desculpem-me a referência bibliográfica. É que já estou me recolhendo a percurso de professor.

 

[Luis B. L. Orlandi é professor de filosofia desde 1968 no IFCH / UNICAMP (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas), especialmente dedicado às filosofias moderna e contemporânea. É autor de A voz do intervalo (Ática, 1980), dentre outros.]


CARTA 18 -
Da redação de "Cartas amorosas"

ADRIANA SALES
[Professora de Filosofia na UFAL]

Campinas, 03 de abril de 2000

Eu queria que você permitisse
Que eu morresse de amores
Que me apaixonasse como uma garotinha
Que chorasse à sua distância
Mas você não deixa.
Seria compromisso demais.
Deixe estar.
Desde há muito
Troquei a languidez destas paixões
Por vícios mais fortes
Sentimentos mais pesados
Pelos quais, aí, sim, tenho crises de abstinência.
Troquei pela explosão do gozo
Pelo tremor das mãos, tateando tuas roupas ainda vestidas.
Pela sensação de câmara lenta quando abro teus botões e, de leve, toco teus mamilos claros.

Teu cinto marrom, trançado do couro de feras domadas, é um falso obstáculo que transponho com infindável deleite. Fingindo apertar tua cintura ainda mais forte.

Eu poderia passar todas as minhas horas explorando a tua barriga. Espreitando o caminho masculino de teus pêlos escuros; mas eu me afobo e me precipito para segurar teu tesão. Perto de mim, sempre pronto. Disponível para meu toque.

E então, me esqueço de tudo.

Teu pênis exala vapores de uma substância cheirosa altamente amnésica

Meus seis sentidos se embotam e eu me perco nesta experiência alucinógena insidiosa

Perco as horas, confundo o meu tempo e, por mais que eu te queira; você nunca me dá de você o suficiente.

As tardes não são suficientes, nem as manhãs e noites e madrugadas. Meu desejo transcende todo o tempo. Transcende as horas que você espertamente me reserva, só para que eu saiba que você nunca será meu.

E, assim, também não queres nunca saber que, nesta brincadeira, eu já me perdi.

 

CARTA 19 -
Da redação de "Cartas amorosas"

Campinas, 03 de abril de 2000

Ah! Se tua esposa soubesse que colocas tudo em mim
Às vezes de um golpe só
Às vezes se negando aos pouquinhos
Se tua esposa soubesse que não me deixas dormir e que queres que eu fique eternamente de quatro

Assim
Que me abandone no chão aos teus desejos obscenos
Que me pendure na minha mesa de estudos com todas as minhas leituras pelo chão
Se ela soubesse que quebraste meus porta-retratos com fotos de amantes antigos
Que tens ciúme de meu sorriso e do meu umbigo, e que, às vezes, no calor da tarde, entras no meu quarto só para bater em mim, com ciúmes porque eu estava sozinha me mexendo

Se ela soubesse
Certamente se vingaria
Não de ti, pelos favores que lhe presta
Mas de mim.

Seguraria meus braços com suas coxas brancas
Apertaria minha cabeça em seu ventre, para que você me punisse pela sua ousadia
Me machucando com força enquanto acariciasse docemente, com a língua, seus mamilos.
Mulher má.

Não deixaria que eu escrevesse para ti novamente
Mesmo que ela nunca soubesse quantas vezes tu te masturbaste entre os meus ombros e falaste baixinho o meu nome no seu ouvido.

Ainda assim, ela certamente se vingaria.



Nota Póstuma
(sobrevivente de uma tentativa de assassinato)

Por conta de um demorado, burocrático, deliberado e eficiente processo de CENSURA PRÉVIA por parte da direção associada da gráfica, que considerou este número pouco acadêmico e o acusou de "levantar questões", o lançamento da revista, previsto para maio/00 só ocorre agora, em novembro, a despeito de toda investida contra nós. A censura prévia, ao que nos consta, ainda fere o Art. 5º, Inciso IX da nossa tão negligenciada Constituição Federal, o que é grave, considerando-se nosso recente passado histórico, e tendo-se em mente os efeitos funestos que a censura surtiu durante e, obviamente, também após a ditadura. Seria o caso de que nossos censores estivessem certos, ou de que a universidade seja mesmo o melhor local para nos esquecermos de tudo isso, do nosso passado, de nossos carrascos... Afinal, já faz tanto tempo, não é mesmo?

Censura - ou algo diferente, conforme tentou-se inutilmente fazer-nos entender, a saber, uma avaliação de certas publicações (mas não de todas) tendo em vista apenas o tema (e o possível impacto, claro, inclusive político, de seu conteúdo uma vez publicado); e tendo por critério unicamente a opinião do burocrata que assina o papel - bem, isto nos parece algo inadmissível, execrável, sobre o qual não podemos nos omitir.

O BOI não se calará ao rugido fraco e lento do LEÃO. O que seria do mundo sem os leões? Sem dúvida, um lugar perigosíssimo, temível, selvagem... e infinitamente mais interessante, e mais justo. Que perigo o mundo falando o que pensa, e produzindo livremente, sem se submeter ao jugo ou à autoridade intelectual (ou político-departamental) de ninguém! E que bonito, que rico!

Como assinala o filósofo brasileiro Roberto Gomes, o tempo não necessariamente traz sabedoria. Pode trazer caduquice. Isto vale para os censores, os editores, a revista. É uma regra geral. Para escapar a isto, uma postura de reavaliação constante de posições e de valores é necessária, mais do que apoiar-se no respaldo de uma ou outra autoridade externa que nos diga o que vale e o que não vale, o que serve ou não. A revista é e continua independente, e luta contra a caduquice na medida em que, a cada número, se reavalia e se atualiza, e, mais importante, não tenta fazer prevalecer sua opinião sobre a de ninguém mais, nem se utiliza de poder institucional para controlar o que é ou não publicado. Somos uma revista aberta. Lamentamos que abertura e auto-análise não sejam posturas amplamente disseminadas, nem adotadas por nossos conviventes.

Aceitamos diferenças de valores, mas exigimos o nosso devido e justo direito de existir!!! Nossos censores que se atualizem, e rápido!

Wilian Pereira - Editor Chefe


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